Pernambuco

AGRICULTURA

Opinião | A importância das sementes crioulas em tempos de crise climática

Uma semente crioula é resultado de anos de seleção natural, adaptada e transformada pelo ambiente onde foi cultivada

Brasil de Fato | Recife |
Tradicionais e valorizadas pela agricultura familiar, sementes crioulas carregam consigo informações sobre clima, solo e manejo relacionados ao seu local de origem
Tradicionais e valorizadas pela agricultura familiar, sementes crioulas carregam consigo informações sobre clima, solo e manejo relacionados ao seu local de origem - Divulgação/MPA

Por Ana Cláudia de Lima Silva* e Walisson Rodrigues** 

Em tempos de crise climática, a importância das sementes crioulas tem ganhado destaque crescente. Também conhecidas como sementes tradicionais ou nativas, as sementes crioulas são variedades de plantas cultivadas e selecionadas por camponeses ao longo de gerações. Elas são adaptadas às condições locais e possuem uma diversidade genética significativa, o que as torna um recurso vital para a agricultura sustentável e resiliente.

A importância das sementes crioulas vai além da simples multiplicação vegetal. Elas carregam consigo conhecimentos ancestrais sobre o manejo sustentável da terra e a produção de alimentos saudáveis e nutritivos. Em um momento em que a sustentabilidade e a segurança alimentar estão sob ameaça constante pela política de morte do agronegócio, valorizar e preservar essas sementes é uma estratégia essencial para humanidade.

O uso de sementes crioulas também tem implicações econômicas e sociais. Por serem adaptadas às condições locais, elas podem reduzir a dependência de insumos externos, promovendo a autonomia do camponês. Além disso, a diversidade de espécies cultivadas pode contribuir para uma dieta mais variada e nutritiva, fortalecendo a saúde das comunidades camponesas.

A crise climática apresenta desafios severos para a agricultura global, incluindo temperaturas extremas, secas prolongadas, inundações e novas pragas e doenças. As sementes crioulas são especialmente valiosas nesse contexto por várias razões, entre as quais a resiliência genética e a capacidade das sementes de se adaptarem e se fortaleceram ao longo do tempo, graças ao acúmulo de informações genéticas que são passadas de geração em geração pelos camponeses. Isso significa que as sementes se tornam cada vez mais adequadas às condições específicas do local onde são cultivadas.

Sementes Crioulas vs. Sementes Híbridas
Sementes Crioulas possuem uma grande variedade genética. Isso as torna muito adaptáveis e estáveis frente às mudanças climáticas. Elas são o resultado de anos de seleção natural e cuidados feitos pelos camponeses, que preservam e melhoram as características das plantas.

As sementes híbridas, usadas principalmente no agronegócio, têm uma base genética muito limitada e controlada. Elas são menos adaptáveis às mudanças ambientais porque foram desenvolvidas em ambientes controlados e com o uso de insumos específicos. No melhoramento convencional, o foco é aumentar a capacidade de herança genética das plantas originais. Isso é feito através de seleção genética em ambientes controlados, onde se usa uma quantidade específica de insumos (como fertilizantes e pesticidas). No entanto, isso não considera as diversas interações ambientais que a planta enfrentará no campo real. Portanto, essas sementes melhoradas convencionalmente podem não ser tão bem adaptadas ao ambiente local como as sementes crioulas.


Diante das intercorrências que acometem a produção a cada safra, a seleção das sementes crioulas torna cada safra seguinte mais adaptada à condição local / Foto: Jorge Leão

A resiliência genética das sementes crioulas, com sua alta variabilidade genética, permite que elas sejam mais estáveis e adaptáveis às mudanças climáticas e às condições locais. Em contraste, as sementes híbridas do agronegócio, com uma base genética mais limitada e desenvolvidas em ambientes controlados, são menos flexíveis e adaptáveis às alterações climáticas.

Ainda, estudos têm demonstrado que as sementes armazenadas por camponesas ao longo de seus anos de cultivo, possuem capacidades adaptativas em intenso processo de melhoramento, porque a cada ano apenas as sementes mais vigorosas são selecionadas para o plantio no ano seguinte. Ou seja, diante das intercorrências que acometem a produção a cada safra, a seleção ocorre, tornando a safra seguinte cada vez mais adaptada à condição local.

Desta forma, regiões onde se prioriza a produção de sementes crioulas e se tem um cenário de condições climáticas consideradas estressantes, como altas temperaturas ou deficiência hídrica, podem ser consideradas um hotspot de biodiversidade, ou seja, uma produção endêmica em um cenário que ameaça a perda deste material, seja pela severidade climática, seja pelo intenso cultivo e introdução  de material genético melhorado, híbrido e/ou transgênico.

Deve-se ter atenção redobrada frente às alterações climáticas rigorosas. Com o campo de produção semeado, mesmo que a semente tenha uma alta capacidade de adaptação,  poderá resultar em uma perda total da produção, a depender da intensidade da seca ou, ao contrário, em um cenário de alta pluviosidade. Por isso, recomenda-se sempre que se tenham cópias de segurança armazenadas, para evitar a perda completa das sementes.

Segurança Alimentar
No cenário de mudança climática e avanço do agronegócio, a fome - que já era presente - tende a se intensificar, associada à redução da biodiversidade dos sistemas, tornando-os improdutivos e muitas vezes com uma base estreita de diversidade alimentar, insuficiente em nutrientes e vitaminas necessárias para o desenvolvimento humano. A combinação acentua a perda da autonomia alimentar - que seria comer o que se quer, sem depender de cadeias longas de circulação de alimentos e sabendo a origem do alimento.


Transgenia pode causar contaminação irreversível em sementes crioulas, além de prejudicar agricultores e consumidores / Joka Madruga

As sementes crioulas, além de garantirem a segurança alimentar, por possibilitarem uma produção mais significativa em um contexto de mudanças climáticas, contribuem para a soberania e sobretudo para a autonomia alimentar e produção de comida saudável. Poder se alimentar do que se planta sabendo a origem dos produtos e o modo de produção não deveria ser um privilégio de poucos, mas direito de todos os/as cidadãos/ãs.

Soberania do camponês
A perda das sementes, decorrente de uma pressão climática e os ataques constantes do agronegócio, pode acarretar no aprofundamento do empobrecimento do campesinato, que depende da produção em escala familiar, com parte desta produção para a alimentação própria e o excedente para vendas.

Caso haja uma grande dependência dos insumos que estão sob o controle das grandes empresas do agronegócio, incluindo-se as sementes, estas camponesas podem perder sua autonomia, além de se endividarem, na necessidade de adquirir novas sementes e insumos para a produção. As sementes crioulas se tornam, desta forma, uma alternativa que garante a não-dependência do sistema empresarial para as famílias manterem a produção de alimentos.

Preservação da Biodiversidade
A perda das sementes agrava o cenário de reducionismo da produção de alimentos, cada vez mais de bases genéticas estreitas e modificadas. Manter a produção de sementes crioulas e criar políticas públicas coerentes com as diferentes realidades das famílias camponesas é uma estratégia vital para a manutenção da diversidade alimentar.

Sistemas agrícolas que se reinventam e diversificam, através de policultivos, sistemas agroflorestais associados a uma diversidade entre e intra-espécies é uma condição fundamental para complementaridade e sinergia dentro dos agroecossistemas, cada vez mais ameaçados pelas alterações climáticas.


Sementes crioulas são o resultado de anos de seleção natural e cuidados feitos pelos camponeses, que preservam e melhoram as características das plantas / AS-PTA

Cultura e Memória
As sementes estão associadas às culturas locais e às memórias de um povo, de uma comunidade, mas a integração entre a indústria e a semente expropriou a história, a cultura alimentar dos camponeses, introduzindo materiais genéticos que além de não estarem adaptados à produção no campo técnico produtivo, também não carrega com eles o sabor, o cheiro, formato e a identidade da cultura alimentar destas famílias agricultoras.

Mitigação dos efeitos das mudanças climáticas
As sementes crioulas mantêm características essenciais para os camponeses, como a adaptação a sistemas de cultivo consorciados e a capacidade competitiva. Isso permite a introdução de plantas com foco na produção de alimentos e, no mesmo ambiente, plantas que contribuem para a nutrição do solo e melhoram as características físicas dele, com fixação de nitrogênio, remobilização de fósforo e disponibilização para as plantas.

A capacidade de fixar nitrogênio contribui, por exemplo, para a diminuição de liberação de gases de efeito estufa para o ambiente. Sistemas consorciados - que não reproduzam o sistema de monocultivo do agronegócio - contribuem para a diminuição de usos de agrotóxicos, que são essencialmente aplicados via implementos de combustíveis fósseis, o que impacta também na liberação de gases de efeito estufa.

Já é consenso que é necessário realizar a transição tecnológica na agricultura. A dependência de insumos externos a torna cada vez mais vulnerável a fenômenos climáticos, como infelizmente aconteceu no Rio Grande do Sul, um alerta para outros eventos que possam acontecer no futuro.

Diante da crise climática, promover o uso e a conservação das sementes crioulas não é apenas uma estratégia de adaptação, mas também uma forma de promover um sistema alimentar mais justo, resiliente e sustentável. Políticas públicas e iniciativas de conservação devem apoiar os agricultores na manutenção dessas variedades tradicionais, garantindo que este patrimônio genético vital continue a prosperar e a contribuir para a resiliência da agricultura global.

*Ana Cláudia de Lima Silva é doutora em Agricultura e professora de Extensão Rural e Agroecologia na UFRPE
**Walisson Rodrigues é cientista social e especialista em “Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo”

Edição: Vinícius Sobreira