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MEIO AMBIENTE

Opinião | A ausência de saneamento nos territórios periféricos e a transição climática: uma trágica combinação na RMR

O IBGE revelou que 30% (405 mil) dos domicílios permanentes na RMR têm descarte de esgoto doméstico de modo inadequado

Brasil de Fato | Recife |
A ausência ou precariedade de redes de esgotamento sanitário nas periferias leva a práticas rudimentares e inadequadas, como o descarte de rejeitos domésticos em valas, córregos, canais e rios - Arnaldo Souza/Observatório das Metrópoles

Arnaldo Souza* e Patrícia Geittenes Tondelo**

Anualmente a Região Metropolitana do Recife (RMR) vivencia situações de caos em decorrência das chuvas, que se manifesta por inundações e deslizamentos cada vez mais recorrentes e intensos. Essa situação se reflete especialmente nas comunidades periféricas, que - além dos prejuízos materiais e risco à vida - convivem com questões relacionadas à proliferação e contaminação por doenças de veiculação hídrica.

Assim, doenças de pele, leptospirose e doenças gastrointestinais, por exemplo, surgem como desdobramentos “naturais” do contato direto e involuntário com água misturada a rejeitos nocivos (esgoto doméstico, lixo comum e hospitalar, óleos automotivos etc.).

É muito importante lembrar que a ausência ou precariedade de redes de esgotamento sanitário nos territórios periféricos da RMR resulta em práticas rudimentares, muitas vezes inadequadas, para o destino dos esgotos produzidos. Tais práticas, associadas à inexistência de infraestruturas eficientes de drenagem urbana e ao descarte inadequado de lixo, produzem quadros em que é comum encontrar rejeitos domésticos, juntamente com a água das chuvas, alagando ruas, sendo lançados em valas e poluindo córregos, canais e rios.

Além disso, é comum encontrar fossas sumidouras, que funcionam como pontos de concentração de água, frequentemente muito próximos uns das outros, e  fossas negras, o que contribui para contaminação de corpos d’água, inclusive do lençol freático, agravando as condições de estabilidade de encostas, por erosão ou escorregamento de barreiras, e potencializando a ocorrência de desastres.

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A relação entre desigualdade, periferia e esgoto na metrópole do Recife

Essa situação, por si só, aponta para as graves desigualdades que historicamente caracterizam o espaço urbano da RMR. Diante das mudanças climáticas - e com elas a intensificação de períodos chuvosos - temos um cenário de grandes desafios.

Segundo o estudo feito pela Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, entre os estados com o maior número de pessoas em áreas de risco de deslizamento, enxurradas e inundações, Pernambuco ocupa a 5ª colocação, com mais de 800 mil pessoas (863.482), sendo que deste total, 206 mil estão no Recife e 188 mil em Jaboatão dos Guararapes. A RMR concentra 73,3% desta população, com Recife e Jaboatão, municípios mais críticos, concentrando 45,7%.

Dados recentes divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a partir do Censo de 2022, revelam que entre os cerca de 1,35 milhão de domicílios particulares permanentes ocupados na RMR, aproximadamente 30% (405 mil) têm descarte inadequado do esgoto doméstico, em fossa rudimentar, vala, corpos d’água e outras formas não ligadas à rede geral. Desse percentual, 31% (125,5 mil) são na cidade do Recife, enquanto Jaboatão responde por 22% (89,1 mil).

É válido ressaltar que esses percentuais não se confundem com cobertura de redes de esgotamento sanitário, uma vez que dados de 2021 do Painel Saneamento Brasil, do Instituto Trata Brasil, destacam que quase metade da população da RMR (45,2%) não conta com coleta de esgoto.


Barreira sob risco de deslizamento, no bairro da Várzea, Recife / Arnaldo Souza/Observatório das Metrópoles

Há de ser considerado que esses dados não se distribuem de forma homogênea no espaço urbano das cidades da RMR, mas concentram-se sob porções territoriais que se caracterizam especialmente pela precariedade de infraestruturas e serviços públicos essenciais, intimamente relacionados às condições de pobreza, implicando na ausência ou deficiência de serviços como esgotamento sanitário, drenagem e coleta de lixo.

Nesse cenário, a ocorrência de soluções informais individualizadas para descarte de rejeitos assemelha-se mais a uma escolha aparentemente individual, embora represente uma alternativa prejudicial para o desenvolvimento urbano e autodestrutiva para as comunidades mais vulneráveis social e economicamente. Esta dinâmica perpetua a ausência de intervenções formais e efetivas por parte das instituições públicas, contribuindo para a marginalização contínua dessas comunidades.

Assim, essas estratégias comunitárias e rudimentares, longe de representar uma solução sustentável, destacam-se como manifestação de uma trágica combinação entre a ausência do Estado, carência de serviços essenciais e o desafio de enfrentar as mudanças climáticas em curso.

Dessa forma, o problema que se impõe é adotar medidas para sanear esses espaços de pobreza, conciliando à estratégias que preparem a metrópole para as transformações climáticas. Sendo esta uma situação de notório conhecimento das autoridades públicas, por que essa questão ainda não é central na agenda pública dos governos locais? Por que temos a impressão de que nada ou quase nada tem sido feito? E o que impede medidas eficientes e efetivas se tornarem prioridades?

Evidentemente, há de se considerar as dificuldades inerentes à implantação de infraestruturas responsivas às necessidades da população, especialmente, diante de condicionantes tão característicos como os das ocupações urbanas periféricas na metrópole recifense. A morfologia urbana e as tipologias habitacionais derivadas da autoconstrução encerram em sua complexidade imensos desafios que levam à presença significativa de becos e vielas, associadas a quadras irregulares, e se traduzem em obstáculos à urbanização desses espaços.

No entanto, limitar-se às “dificuldades” que estes espaços impõem à própria urbanização não pode ensejar argumento ou desculpa para a negação, por parte das autoridades municipais, do problema posto à realidade especialmente dos mais pobres e vulneráveis. Sanear e urbanizar é possível e a ausência de um não pode ser considerada impeditiva do outro. Esta mesma lógica se aplica para o tratamento dos locais de risco, que certamente coincidem com a ausência de urbanização e saneamento na RMR.

É necessário ponderar abordagens integrativas, como as apresentadas nos exemplos dos Manual de Ocupação dos Morros, desenvolvido pelo Programa Viva o Morro (Convênio Nº 082/1999) nos anos 2000. Elaborado com o intuito de romper com o estigma de preconceito criado pelas dificuldades para ocupação urbana do terreno de declividade, o manual apresenta uma série de técnicas e padrões construtivos, urbanísticos e de infraestrutura para planejar e administrar os morros, dialogando com o atual quadro de transição climática.

As intervenções urbanísticas em áreas de morros ou alagáveis geralmente ficam restritas em função de demandas isoladas. Assim, é imperativo romper essa lógica e apontar para a urgência de um processo de urbanização que integre políticas de habitação, redes de saneamento e drenagem, educação ambiental e saúde pública.

Além disso, aplicar soluções tecnológicas de baixo custo às abordagens tradicionais de descarte de esgoto e drenagem urbana podem contribuir consideravelmente para a mitigação dos impactos negativos do “consórcio” entre condições precárias dos territórios periféricos e a intensificação das chuvas.

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No que diz respeito ao descarte de esgoto, a implantação de fossas sépticas comunitárias, devidamente equacionadas para atender a conjuntos de domicílios, utilizando processos naturais de degradação e filtragem de rejeitos, como as fossas biodigestoras, surgem como alternativas viáveis. Consideradas economicamente mais sustentáveis, estas práticas, além de contribuir para a melhoria das condições habitacionais e de saúde da população, podem ajudar a reduzir a saturação do solo e minorar a ocorrência de deslizamentos. 

Na dimensão de drenagem urbana, uma possibilidade viável seria a utilização de materiais porosos na pavimentação, permitindo uma distribuição mais homogênea da infiltração da água das chuvas no solo e evitando a sobrecarga das redes de drenagem. Essa prática, combinada com a instalação de reservatórios para captação e armazenamento de água da chuva, pode reduzir significativamente o risco de alagamentos e deslizamentos em decorrência da erosão do solo. A água captada pode ser usada para irrigação, limpeza doméstica e outras atividades, aliviando o sistema de abastecimento da RMR.

Em áreas de maior propensão à inundações e alagamentos, a integração de abordagens como biorretenção a partir de jardins filtrantes, onde a água da chuva é coletada e filtrada a através do solo e da vegetação, e a criação de bacias de armazenamento temporário da água da chuva ou parques alagáveis, se apresentam como alternativas à adaptação climática.

As águas retidas nesses processos podem ser destinadas à utilização na limpeza e irrigação de jardins e parques urbanos ou mesmo para liberação lenta aos cursos naturais das águas urbanas da RMR, contribuindo assim para controlar o fluxo das águas e evitar desastres sociais acarretados pelas condições climáticas.  

Por fim, é de máxima importância que o problema seja reconhecido pelas autoridades públicas como urgente e que a população, especialmente os mais pobres, compreendam a gravidade do que chamamos de “trágica combinação”, pois é precisamente sobre essa população que recaem com mais intensidade os efeitos nocivos do descaso com o meio ambiente e com o saneamento básico nos territórios periféricos.

Notadamente, o planejamento e o ordenamento urbano em contextos tão complexos como o da RMR não é uma tarefa fácil. Mas é possível. Contudo, para esse fim, é imperativo um maior protagonismo das comunidades, demandando publicamente a correta e legítima contemplação dos seus direitos e necessidades.  

Pela via da negação das autoridades públicas constituiu-se um quadro de negligência histórica com as comunidades nos territórios periféricos na RMR, “naturalizando” a dramática realidade que vitimiza os mais pobres e lhes imputa o dever de buscar soluções particulares e individuais para problemas sociais coletivos.

Apenas pela via da coletividade, da luta, do engajamento e participação popular as soluções podem encontrar um caminho para a realização.

*Bacharel em Gestão de Políticas Públicas, doutor em Desenvolvimento Urbano pela UFPE e pesquisador do Observatório das Metrópoles – Núcleo Recife.
**Arquiteta e urbanista, doutoranda no Programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano e pesquisadora do Observatório das Metrópoles – Núcleo Recife.

Edição: Vinícius Sobreira