O veículo particular - mesmo o elétrico - não ajudará a enfrentar o caos do trânsito nas cidades
Hoje começo um grande desafio ao ser a mais nova colunista do Brasil de Fato Pernambuco. Espero responder à altura ao convite, contribuindo para o debate e aprofundamento das questões urbanas, em especial no que tange a mobilidade urbana.
Já inicio num cenário de clima quente! Não pelas temperaturas quase constantes da cidade do Recife neste mês de setembro, mas pelo momento que o Brasil atravessa, ao enfrentar uma das maiores secas da sua história que, somada ao “descontrole” das queimadas nas “zonas rurais”, gera uma assustadora elevação do nível da poluição atmosférica em diversas cidades; ou seja muito acima do recomendável para as nossas saúdes humana e urbana.
Estamos também em contagem regressiva para as eleições municipais, que ocorrerão em poucos dias, em meio a debates sobre planos e projetos de enfrentamento aos desafios ambientais.
No meio dessa celeuma e cadeiradas, colocamos a questão: o que a mobilidade urbana tem a ver com tudo isso? E o que podemos “exigir” de nossos futuros prefeitos?
Primeiro, o conceito de mobilidade não se resume apenas à viário. É muito mais complexo do que “engenharia de tráfego” - carente, aliás, em muitas cidades. Mobilidade é o “como” deslocamos e a “qualidade” dessa viagem conta muito para as pessoas que realizam suas diversas atividades.
Vamos ter muitas oportunidades para aprofundar o conceito de mobilidade urbana. Reforçamos agora que há diversos sistemas de transportes que compõem uma rede de mobilidade – leia-se rodoviário, ferroviário, aéreo e marítimo - que precisam ser trabalhadas em conjunto.
Neste caso, os sistemas citados são responsáveis por quase 25% das emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) no planeta. Considerando o tipo de transporte, 72% das emissões globais são provenientes de veículos rodoviários, responsáveis por 80% do aumento das emissões entre os anos de 1970 e 2010(!!!).
E pior: ano após ano, estudos revelam que estão aumentando as emissões, à medida que o planeta vai ficando cada vez mais quente. O Recife, juntamente com as demais cidades do Brasil, “trabalham muito bem” para que nós não alteremos o cenário, ou, no mínimo, honremos os compromissos firmados no Acordo de Paris, ratificados pelo Congresso brasileiro em 2016, objetivando justamente reduzir as emissões dos GEEs.
Mobilidade Urbana deveria ser de fato um eixo de desenvolvimento urbano de todas as nossas cidades. Curitiba, desde a década de 1970, é um exemplo bem-sucedido desse modelo de integração entre infraestrutura viária, transporte público e uso do solo.
É inquestionável a montanha de desafios que requerem o enfrentamento de todos – políticos, cientistas e a sociedade. É imprescindível que haja uma mudança de paradigmas, lógicas, planos, projetos, origem de financiamentos, privilégios…
Aqui fica um alerta: não é somente a “descarbonização” por meio de carros movidos à bateria que criará um futuro mais sustentável para todos. Trocar carros e motos por carros elétricos não resolverá o consumo do espaço de nossas ruas. O famigerado “viário” já ocupa aproximadamente 30% do espaço urbano. A venda de mais carros – e elétricos - é conversa fiada para se mudar o modelo dos automóveis e se vender mais e mais carros.
Sinto em afirmar, meu caro leitor, que veículo particular não é a estratégia mais eficiente para enfrentar o “caos” do trânsito nas cidades. Aliás, o Recife ganhou mais uma vez a medalha de ouro no quesito pior congestionamento do Brasil em 2024, de acordo com a pesquisa da CNT (Confederação Nacional do Transporte) de mobilidade da população urbana, com 58 minutos de tempo médio nos deslocamentos. Pasmem! Recife é a capital com menor extensão territorial! Algo sério não está funcionando, concordam?
Quais são as possíveis alternativas para esse beco sem saída? Pois bem, uma alternativa seria a melhoria e expansão do transporte público coletivo, em especial o estruturante, não dependente do combustível fóssil, a saber: metrô, VLT e trólebus - aqueles ônibus que andavam com “cabos aéreos” nas ruas do Recife até meados dos anos 2000 (alguém lembra?).
Sim, é delirante, meu caro, imaginar um transporte público coletivo de qualidade na nossa cidade. Por incrível que pareça, temos uma lei municipal aprovada em 2021 que trata exatamente disso. Ela se chama “Política Municipal de Mobilidade Urbana” e institui o famigerado “Plano de Mobilidade Urbana do Recife” - para os íntimos, “PlanMob”.
Ela é excelente em seus 88 artigos. Verdade seja dita, o Recife, com muito atraso, fez a lição de casa ao atender o artigo 24 da Lei Federal n°12.587/2012 (Política Nacional de Mobilidade Urbana), que exige o PlanMob dos Municípios para que se possa solicitar financiamento ao Governo Federal. Algo muito recente aconteceu com o último Programa de Aceleração do Crescimento (PAC, do Governo Federal), que tem sido a principal fonte de financiamento de diversos projetos nas cidades.
Não obstante, temos o excelente Manual de Desenho de Ruas do Recife (MDR), o qual recomendo o download gratuito na página da CTTU.
Ao futuro prefeito do Recife, frente ao desafio que me foi proposto para esta primeira coluna, recomendaria seguir de fato os objetivos e estratégias do Plano de Mobilidade, como do Manual de Ruas. Caso não haja tempo para lê-lo, evidencio aqui singelos pontos, sendo que o primeiro requer basicamente papel e caneta:
• Redução das velocidades – isso salva (muitas) vidas e contribui para redução dos gases de efeito estufa;
• Implantação de faixas de ônibus de forma integrada em todas as vias arteriais da cidade – precisamos de eficiência para o sistema que mais transporta pessoas;
• Implantação de mais ciclovias (e não ciclofaixas!) em rede e com larguras adequadas - as “ciclofitas” com larguras menores do que as aceitáveis e descritas no MDR não estão atraindo novos usuários nem trazendo a devida segurança aos usuários, além de não serem integradas em si;
• Redesenho urbano, ampliando para todo o território da cidade as áreas com trânsito calmo nas ruas locais. Para ruas estruturantes, implantação de multimodais (falaremos dela em outra oportunidade);
• Intensificação da fiscalização - afinal, multa também tem efeito educativo;
• Ampliação de políticas voltadas para educação no trânsito. Precisamos ressignificar nosso papel como cidadãos nesta guerra que se tornou nossas ruas.
A lista é longa, mas somente com o aprofundamento destes pontos, atrelados diretamente à gestão municipal, teremos feito uma revolução na disputa do espaço público e da mobilidade urbana. Do contrário, o plano de mobilidade pouco contribuirá para um desenvolvimento urbano sustentável. Servirá somente para a reprodução das desigualdades do “carrocentrismo” – em que o automóvel é considerado o centro das políticas de mobilidade urbana.
É preciso um basta nessa lógica, pois a cidade está a cada dia mais “imobilizada”, poluidora e matando mais e mais pessoas.
Edição: Vinícius Sobreira