Jackeline Florêncio é advogada, feminista, mestra em políticas públicas e discute nessa entrevista a cultura do estupro, a naturalização da violência contra as mulheres e a importância do dia latino-americano e caribenho pela discriminalização do aborto que está se aproximando.
O Brasil, 72% dos casos de violência contra as mulheres denunciados pelo disque-denúncia 180 foram cometidos por homens com quem as vítimas mantém ou mantiveram relações afetivas. Quais são os caminhos para o enfrentamento a essa violência?
Esses dados correspondem à violência doméstica e familiar contra a mulher. É uma das expressões de uma discriminação estrutural contra as mulheres e tem como subjacente o fato de que o agressor age como se a mulher fosse sua propriedade, tenta exercer controle sobre seu corpo e comportamento, e pune o que seria um “desvio” por meio da violência. Essa discriminação é uma construção social muito complexa e que precisa, portanto, de ações também complexas para ser desconstruída, em várias frentes. No caso da violência doméstica tem o fato de que, no meio de toda a violência, muitas vezes existe a dependência financeira da mulher, que dificulta a separação, a dependência psicológica e mesmo o amor por aquele homem que está agredindo. De outro lado, muitas instituições, como a família, o Estado e as igrejas também fortaleceram o exercício de controle e poder sobre as mulheres. Por isso, o enfrentamento à cultura da violência contra as mulheres tem um aspecto de mudança das instituições, que precisam se responsabilizar para combater a desigualdade de gênero na sociedade. Então, o Estado, por exemplo, que deveria ser norteado por princípios republicanos de diminuir as desigualdades sociais, precisa implantar políticas públicas que forneçam às mulheres as ferramentas para romper com a violência, como políticas de trabalho e renda, assim como políticas de proteção, como as Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha. Agora, se eu puder destacar um fator de enfrentamento primordial eu diria: o fortalecimento da própria mulher, da sua autoestima, do seu senso interno do quanto é preciosa e única e não merece e nem pode se permitir permanecer em um relacionamento abusivo.
O Mapa da Violência 2015 mostra que o número de mortes violenta de mulheres negras aumentou 54% em 10 anos e o de mulheres brancas diminuiu 9,8%. O que esses dados refletem de nossa sociedade?
São dados muito tristes e apontam que além da desigualdade de gênero, existe também uma forte desigualdade e discriminação racial no Brasil. São fatores que não se separam: as desigualdades de gênero, de raça e classe social, cuja simbiose causa graus diferentes de violações. A maior parte das chefes de famílias monoparentais (só pai ou só mãe) é composta por mulheres negras de classe social baixa. Essas mulheres enfrentam sozinhas diversas violências, contra elas próprias e contra seus filhos e pessoas próximas. O aumento na cifra de mortes violentas de mulheres negras aponta para a exposição e vulnerabilidade a que elas estão submetidas, a disparidade no acesso à proteção, segurança e dignidade. Obviamente que isso tem relação com as raízes histórias da escravidão e do próprio racismo institucional. Mas mais que isso, o racismo e o sexismo estão na gênese da formação da sociedade brasileira, é estruturante.
Só no mês de agosto de 2016, 965 mulheres denunciaram que foram estupradas em Pernambuco. Podemos dizer que há uma certa naturalização e um silenciamento da sociedade diante desses crimes? Qual sua opinião?
Essa cifra lamentavelmente é maior, pois muitas mulheres que sofreram estupro não denunciam, por medo de estigma, vergonha, etc. Existe uma tolerância gigante da sociedade em relação à violência contra a mulher, e nisso está a violência sexual. É expressão da cultura do estupro, que desumaniza a mulher, viola sua liberdade. No caso da violência sexual, é como dizer à mulher que ela sequer é dona do ente material mais próximo dela mesma, que é seu corpo, seu primeiro e principal território. Pernambuco é um estado extremamente machista e racista, quem mora aqui sente. A omissão das pessoas quanto à cultura do estupro está relacionada à crença de sujeição, submissão das mulheres, coisificação de seus corpos. É quase como se, pelo simples fato de nos identificarmos e sermos reconhecidas como mulheres, merecêssemos a violência. Por isso também há tanta culpabilização das vítimas. Mas também está relacionada ao controle: mulheres com medo de estupro podem evitar sair de casa, podem evitar se vestir de determinada maneira, podem evitar viver em plenitude, têm, portanto, sua liberdade e vida como um todo violadas. O medo é uma ferramenta poderosa de dominação.
Recentemente, a Polícia Militar de PE, divulgou “orientações", endossadas pelo governador Paulo Câmara, de como as mulheres se prevenirem contra crimes de estupro, entre elas evitar o uso de bebidas alcóolicas e a circulação em pontos da cidade. O que isso reflete?
Eu vi essas recomendações, são tão lamentáveis quanto inócuas. É quase como dizer que as mulheres que sofrem estupro são culpadas e responsáveis por isso, pois estavam fora das regras de conduta de contenção de seu comportamento, estavam expostas e assumiram o risco. Ora, por que ao invés de tentar restringir ainda mais a nossa liberdade o Estado, por meio de seus órgãos do sistema de segurança pública, não garantem uma cidade mais segura para as mulheres? Se é mais segura para as mulheres, naturalmente será mais segura para toda a população. Por que não repensamos o acesso à cidade, como espaço de convivência plural, segura e coletiva, ao invés de restringir o acesso à ela por parte de metade da população? Por outro lado, esse pronunciamento também reflete omissão de enfrentar o epicentro do problema. Daqui a pouco vão querer que voltemos a passar a maior parte de nossas vidas em casa, como se isso fosse sinônimo de segurança, como se mulheres não sofressem também violência em casa. Ou o Estado e toda a sociedade se posiciona com firmeza contra a discriminação e violência contra as mulheres no âmbito público (na rua, no acesso ao poder institucional) e no âmbito privado, da família, ou permaneceremos reféns do medo.
O Brasil está entre os países com a legislação mais restritiva do mundo em relação ao aborto. Por que se criminalizam as mulheres que abortam?
Essa questão do aborto é muito interessante. Porque, apesar de haver uma tolerância grande socialmente falando quanto à violência contra as mulheres, o Estado já se posicionou sobre o tema, a exemplo da Lei Maria da Penha, que é fruto das reivindicações do movimento feminista, mas não deixa de ser uma resposta do Estado. Agora, quando se fala de aborto, tudo muda. Essa pauta não foi absorvida realmente pelas políticas públicas, e é de fato crime no Brasil, menos nos casos de risco de morte da gestante ou de gravidez resultante de estupro. Tem também o caso dos fetos anencéfalos. Acredito que isso tem a ver com a frágil laicidade do Estado Brasileiro. Temos uma influência muito grande principalmente da Igreja Católica e de várias igrejas evangélicas na legislação e nas políticas públicas. A religião perdeu para a ciência a batalha sobre as explicações da origem do mundo e também perdeu para o Estado quanto ao governo geral. As instituições religiosas não querem perder a última batalha: a explicação sobre a origem da vida. De toda forma, falando ainda sobre o Estado Laico, o problema é que em meio a esse jogo de poder e domínio está a morte cotidiana de milhares de mulheres que se veem obrigadas a ir a clínicas clandestinas para fazerem o aborto. Ou seja, do ponto de vista prático, antes mesmo de ser uma disputa de poder e controle sobre os corpos das mulheres, é uma questão de saúde pública, pois há mulheres morrendo e essas mulheres são em sua maioria negras e pobres. E o Estado precisa se ocupar disso.
Estamos nos aproximando do dia latino-americano e caribenho pela descriminalização do aborto. Qual a importância desse dia?
É uma data simbólica, importante para colocar em discussão o tema do aborto, dos direitos sexuais e reprodutivos, e pautar na sociedade e no Estado a necessidade de superar seus tabus e suas crenças ultrapassadas. Criminalizar uma conduta é um dos graus máximos de reprovação social. Fazer com que o aborto deixe de ser crime é garantir às mulheres o direito de escolha e o acesso à saúde para fazer valer a sua escolha, sem colocar em risco sua própria vida.
Edição: ---