[Quando enfim adormeceu, ainda não havia parado de chorar]. Ele vigiou o menino toda a noite. Deu-lhe os remédios nos horários indicados, aferiu sua temperatura de hora em hora, afastou as muriçocas, o barulho dos freios dos carros no cruzamento lá embaixo, cada um dos dragões que uma madrugada de janeiro pode levar ao quarto de um apartamento de quarto e sala na Conde da Boa Vista onde vivem um menino e seu pai. Júlia faleceu numa noite quente como esta. Ele havia pego o menino na creche mais cedo e comprado uma porção de pães de mel na Padaria Santa Cruz. Dia a dia, Júlia atravessava a porta, tomava o menino para si, “Mainha chegou, meu amor, Mainha chegou”, pendurava circense a bolsa no cabide e, com o menino aos braços, jogava-se sobre o sofá, convocando-o para estar lá, com os dois, ou para se juntar a eles “na honra desta dança, cavalheiro”, caso Ele já houvesse posto algo para tocar antes de sua chegada. Na última vez, abraçados no centro da sala, Ele segurando o menino no braço esquerdo, ela apoiando o rosto do menino em seu ombro direito, dançaram os três o lado A inteiro do disco de Al Green. Mas se, nesses inícios de noite, Júlia abria a porta da sala e avistava pães de mel sobre a mesa, e se havia algo a comemorar, como havia o terceiro capítulo da tese a comemorar, ela sorria com os dentes de mil Condes da Boa Vista, beijava-lhe a boca mordendo o doce e fazia dos três, no pequeno apartamento, uma festa. Naquela noite quente, no entanto, os pãezinhos endureceram sobre a mesa. Agora, quase um ano depois, o menino adoentado, as caixas do antibiótico, do antiinflamatório e do antialérgico no balcão da cozinha, o termômetro em suas mãos, Ele velava o sono de sua ausência. Observava a inquietação febril do menino sobre a cama. Júlia o tinha ensinado a vasculhar os seus “vestígios genéticos”, como ela os chamava, no corpo do menino. “As mãos de Vovó Iara, ele será pianista”! Achando graça, ele discordava, “as mãos de Tio Augusto, ele será ascensorista”! Riam-se, o menino se ria também, sem compreender, e os dois vaticinavam muitos futuros baseados em passados queridos. O menino tinha nos olhos o sol de Júlia, o jeito dela de pedir para dançar. Arqueava os bracinhos e se movia desengonçado no vazio apertado da sala, entre os livros do pai e a falta da mãe. Dele, o menino trazia o nariz, a largura da testa e alguma fragilidade tímida, muito discreta, que ambos, o menino e o pai, esforçavam-se para esconder um do outro. Noite a noite, logo que o menino dormia, Ele chorava e sofria para se livrar da insônia da vontade. Não era raro que quando, enfim, adormecesse, Ele ainda não houvesse parado de chorar.
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