Um homem na madrugada escreve angústias antigas. “Sua avó sabia”. Algumas tardes atrás, sentada no sofá da sala, minha mãe me entregou essa frase. “Sua avó sabia que você era gay”. E sorriu contra o meu olhar de desaviso. Eu comentara que apenas muito recentemente havia compreendido o impacto de vovó em minha própria personalidade, mesmo nestes meus trejeitos com a dor, o carnaval e os pequenos comprimidos brancos para a hipertensão. “Sua avó sabia” foi o que, então, minha mãe me disse em resposta. “Você, minha filha, precisará de muita paciência para a relação entre seu filho e seu marido”. Duas, quase três décadas depois, minha mãe atualizava aquelas palavras na tarde e conferia a vovó uma força profética. Ela, afinal, sabia o que sequer minha mãe parecia, àquele instante prematuro, saber. E me amava, apesar do que prenunciava, talvez em sua razão. [Iran tem me dito, trelando com minhas manias, que eu conto histórias como se somasse 80 anos e um passado irrestrito. Deve ser vovó, meu amor, que fala quando minha garganta vacila à véspera da dúvida]. Na noite de sua morte, meus pais, meu irmão e eu visitamos vovó em casa. Ela sentia dores. Queixava-se de gases. Seu enfarte, em verdade, já começara. Ainda assim, conosco cantou “Carinhoso” algumas vezes. Alegrava-se ao choro. “E só assim então serei feliz, bem feliz”. Antes de deixarmos a casa, sem muita explicação, meu pai pediu a ela a cópia sobressalente das chaves dos portões. Ela, sem estranhar, consentiu com o pedido incomum. Na manhã seguinte, o telefone tocou cedo. A moça da limpeza gritara à janela da casa de meus avós, sem retorno. Ninguém a atendeu. Telefonou, assim, à nossa casa. Quando meu pai o encontrou, o corpo de vovó se achava no chão do seu quarto, encolhido como quem se dobra ao próprio sofrimento. Sozinho, meu pai a pôs sobre a cama, onde eu a veria. Da cadeira de balanço da sala de televisão, meu avô vertia as últimas lágrimas de um homem vindo de uma madrugada. Quando o coração de vovó doeu enfim, vovô soube, mas já não conseguia mais se levantar e, embora tenha vivido por mais alguns meses, penso que ele nunca se levantou. Atravessou a escuridão e a manhã, àquela cadeira, compreendendo a partida. “Sua avó sabia”. Nunca cogitei que ela não soubesse. Com sorte, é por isso que eu, como ela, prefiro as tardes, as ruas desta cidade e os retratos de angústias antigas.
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