No dia 8 de fevereiro a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), atendendo a determinação da FIFA, divulgou o documento que obriga os clubes brasileiros a manterem equipes femininas de futebol. O Regulamento de Licença de Clubes obedece ao similar da Confederação Sul-americana de Futebol (CONMEBOL). O documento determina que só participarão de competições nacionais e continentais os clubes que possuírem equipes femininas, dando diferentes prazos para clubes das séries A, B, C e D.
Atualmente, dos 20 clubes que disputam a principal divisão do futebol brasileiro, apenas 8 mantém equipe feminina – entre eles o Sport, que desmanchou o time em 2016, mas reconstruiu no início deste ano. Pernambuco tem uma das principais equipes femininas do País: o Vitória de Santo Antão, heptacampeão pernambucano. Entre os clubes da capital pernambucana, o Náutico (3º colocado no Pernambucano feminino 2016) tem melhor estrutura, com equipe principal e uma sub-17.
Leia também: Hexa é luxo? Vitória de Santo Antão é heptacampeão pernambucano
Mas o Santa Cruz (4º no Pernambucano 2016) foi no sentido oposto: anunciou no início de fevereiro o desmanche do time feminino. O departamento de futebol feminino voltara a funcionar em 2016 após 11 anos fechado, mas teve vida curta. As 28 atletas que compunha o elenco coral foram dispensadas “com uma mão na frente e outra atrás” e 5 meses de “salário” atrasados. As jogadoras deveriam receber irrisórios R$ 250, mas nem isso estava acontecendo. Oito atletas vieram de outros estados para jogar no Tricolor e, após a dispensa, algumas ainda não retornaram para suas cidades.
É o caso de Daiane Cristina, 22 anos, que veio da cidade paulista de Jacareí. A zagueira, que acabara de deixar a equipe de Taubaté-SP, conta que foi convidada em agosto através do Facebook por um conhecido do treinador tricolor Farges Ferraz. A promessa era de alojamento, ajuda de custo de R$ 250 mensais e a disputa no Campeonato Pernambucano 2017. “Eu não o conhecia, mas topei”, conta Daiane. “Mas nada se concretizou. Morei dois meses com a psicóloga da equipe e fui mantida por ela e pela mãe. Depois alugaram para as jogadoras uma casa em Olinda que mal tinha água na torneira e tomávamos banho de balde. Houve dias em que sequer tivemos água para beber”, reclama a jogadora.
Sem camas, geladeira ou fogão, as jogadoras dormiam no chão e passavam fome, com apenas duas refeições diárias. “A primeira refeição do dia era um almoço às 16h: pão com mortadela ou salsicha, macarrão. Às vezes feijão com farinha e arroz. Treinávamos após a refeição e, ao retornar para casa, jantávamos a mesma refeição”. O feijão com arroz e farinha sequer era fornecido pelo clube, mas pela empresa alimentícia Kicaldo, que patrocinava a equipe feminina. A situação ficou menos ruim quando a mãe de uma atleta emprestou um mini fogão de duas bocas.
O aluguel da casa não foi pago e as jogadoras foram expulsas. Depois passaram um período noutra casa, alugada por um preço baixo pela mãe de outra atleta, mas o aluguel também não foi pago pelo clube e elas deixaram a casa no fim de dezembro. Ainda durante esse período as atletas passaram duas semanas sem treinar porque o clube deixou de fornecer recurso para passagens de ônibus. Hoje Daiane voltou a morar com a psicóloga e cogita jogar o pernambucano pelo Central, de Caruaru. “Mas se não der certo quero voltar para casa. E o Santa Cruz é quem deve custear a passagem”, afirma.
Terceirização
Em nota oficial sobre o tema, o Santa Cruz admite que a iniciativa do futebol feminino não foi desenvolvida pelo clube, mas oferecida por terceiros. E que estes teriam se comprometido em assumir custos de contratação e manutenção de atletas e comissão técnica. A nota afirma que o Santa Cruz garantiria apenas “o cumprimento da burocracia estabelecida pela Federação Pernambucana de Futebol e CBF”. A nota diz ainda que o presidente do clube, Alírio Moraes, não assinou contrato de nenhuma atleta, não dispõe de informações sobre as jogadoras, sequer chegou a conhecer o treinador da equipe feminina, Farges Ferraz, e só soube das condições precárias através das redes sociais.
Mas a zagueira Daiane recorda que não foi essa a conversa que teve com aqueles que a contrataram. “Fomos convidadas para jogar no Santa Cruz, sem essa de ‘terceiros’. E que o patrocinador Kicaldo daria R$ 2 mil para o Santa Cruz, que nos repassaria como ajuda de custo. Mas não vimos a cor do dinheiro”, diz a atleta. No dia 15, após a situação das atletas se tornar pública, foi que ela recebeu uma parte do valor, equivalente a pouco mais de dois meses da ajuda de custo prometida. A nova promessa é que após o Carnaval ela receberá o restante do valor que o clube deve. “Depois que estoura a bomba eles tiram o corpo fora. O clube deveria arcar com a gente”, avalia.
A MP do Futebol, sancionada por Dilma Rousseff em 2015, cria o PROFUT, que facilita a negociação de dívidas dos clubes com o Estado e, para os que aderirem, estabelece regras. Entre elas a obrigatoriedade de manter equipes femininas a partir de 2017. O Santa Cruz aderiu ao PROFUT no segundo semestre de 2016. Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco em maio de 2016, o diretor da base e responsável pelo futebol feminino Tricolor, Bleno Cruz, afirmou que existem brechas para driblar o PROFUT nesse tema. “Muitos clubes cedem suas camisas para equipes femininas ‘informais’ atuarem, livrando o clube da responsabilidade”.
Para completar, o novo regulamento publicado pela CBF também afirma textualmente (na página 22) que o clube não tem obrigatoriedade de manter uma equipe feminina, podendo “manter acordo de parceria ou associação com um clube que mantenha uma equipe feminina principal estruturada”. A barra está aberta para a terceirização, que pode manter o futebol feminino em condições bastante precárias.
Leia também: Futebol feminino continua no escanteio
Edição: Monyse Ravenna