Ele cortou as unhas dos pés. Aguou a comigo-ninguém-pode, os cactos, as suculentas, a hortelã de folha grossa. Devolveu a poesia completa de Manuel Bandeira à estante. Passou o café no coador. Só então, como se enfim preparado, sentou-se no sofá da sala e, com a xícara de cerâmica às mãos, sentiu-se só. Dois andares acima, o Velho do Santana verde ouve "La Barca". Uma vez após outra. E mais uma e incessantemente "En la primera noche que te amé", à voz de Luis Miguel, sempre às tardes de sábado, mais se chove, como agora chove, e o Velho sente aquilo que Ele, que pouco conhece o Velho, imagina ser uma dor aguda, uma fisgada no lado direito de um corpo que a compensa do lado esquerdo e manca, acostumado e torto, diante do vazio. Desde que, após a separação, Ele se mudou para o apartamento que sua mãe lhe deixou, previne-se para as tardes de sábado. Corta as unhas, normalmente das mãos. Limpa as plantas, mesmo os cactos, como sua mãe fazia para, ele supunha, amenizar a espera. Passeia pelos livros de Luísa que, por desacordo ou vontade, entraram nas caixas dEle na madrugada em que ele as fechou. Arrepende-se de não ter trazido consigo o disco de Caetano que Ele deu a ela numa noite de junho, sem data especial, apenas porque Luísa gostava de bolero e Caetano havia, ainda que sob as reprovações e implicâncias dEle, gravado "La Barca". Àquele sábado, fazia um mês e cinco dias que não se viam ou falavam. Ontem, entretanto, um cigarro, uma dose, qualquer desculpa, Ele telefonou. Ligou às 11h24. Luísa não atendeu. Ligou às 15h35. Luísa não atendeu. Ligou às 22h12. Luísa não atendeu. "Porque yo seguiré siendo el cautivo de los caprichos de tu corazón". Hoje, Ele precisou que um café o acompanhasse até o sofá. Que jeito? Agora, sentado, pernas dobradas uma sobre a outra, olhos baixos deitados e cegos sobre a capa do romance de Zambra que Luísa trouxe, para Ele, de uma ida avulsa à livraria na manhã em que Ela acordou e não havia bem o que dizer, Ele apenas espera o Velho terminar. A dor do Velho terminar. "Hasta que tú decidas regresar".
Edição: Monyse Ravenna