Pernambuco

CRÔNICA

Três suores

Desde a noite da sexta, há mais chuva que cidade no Recife

Brasil de Fato | Recife (PE) |
*Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra.
*Roberto Efrem Filho – ou Beto, como gosta – é do Recife e, vez ou outra, desajeita-se na palavra. - Arquivo pessoal

Aos trinta e três anos e dezessete crônicas de jornal contadas, Ele percorre a Boa Vista. Está molhado, metido numa camisa de botões, mangas curtas e viscose estampada. Ao vesti-la, chegou a pensar se não seriam cores demais contra o nublado dos últimos dias, uma assimetria. São 16h de um domingo de maio. Desde a noite da sexta, há mais chuva que cidade no Recife. Agora, neste ensaio de estio, as ruas descansam aguacentas e mudas. Ocas, talvez. Porque a cada respiro ou tropeço de calçada, um eco ou uma fragilidade se escuta dos prédios da Aurora. Numa esquina da Rua das Ninfas, Ele cumprimenta Thiago, o boy do fiteiro azul. Thiago, a Ele parece, olha-o sem compreender a existência encharcada daquele homem à sua frente numa tarde em que todos se cobrem em suas camas, em suas dúvidas e em seus aparelhos de televisão. Todos, claro, à exceção do próprio Thiago, abrigado sob as telhas brasilit do fiteiro azul, e de Jomard Muniz de Brito, meio encurvado, descendendo poemas – Jomard prefere “atentados poéticos” – a despeito do dilúvio ou, nunca se saberá, provocando-o. Ele não vê Jomard, pressente. Mas vê os olhos interrogadores de Thiago e se pergunta se não deveria comentar, sei lá, sobre a imprudência do tempo, a derrota do Santinha, a premência de cigarros. Procura arranjar em poucas frases uma razão suficiente para restar ali, pingando ao relento nesta tarde de domingo em que se desistiu de levar as crianças ao Parque 13 de Maio e de tomar uma cerveja no Mercado de Santa Cruz. Ele, no entanto, não encontra palavra. Aponta um isqueiro vermelho exposto na prateleira mais alta, entrega a Thiago uns trocados e acende uma ponta pela tarde, confrontando a água que ainda escorre da castanhola acima do telhado de brasilit. Não há palavra. Ele conclui sem dizer. Nenhuma que o ajude a explicar a Thiago – Jomard não careceria de explicações, estariam à pele – que Ele desceu do apartamento e adentrou a chuva porque as portas não o continham, sequer o branco da tela do computador o concentrava porque mesmo os seus sentidos não conseguiam manter coesos os seus poros, a boca seca, os pelos do pescoço eriçados, o calor, porra, o calor. Palavra alguma, Ele sorri discretamente enquanto traga, levaria ao gosto de sal e vontade daqueles três corpos se confundindo nos suores e nos lençóis de uma noite de inverno.

Edição: Monyse Ravena