Gabriela Barreto de Sá é doutoranda em Direito, pela Universidade de Brasília e professora da Universidade do Estado da Bahia e conversou com o Brasil de Fato sobre o encarceramento de mulheres.
Brasil de Fato: Qual a relação histórica do encarceramento no Brasil, considerando nossa origem escravocrata, com a atual superlotação de presídios femininos e masculinos com pessoas negras?
Gabriela Barreto de Sá: Primeiramente, é importante resgatarmos um pouco uma concepção de que falar em encarceramento é falar em prisão, em presídio e, na história do Brasil, considerando o nosso passado colonial, é preciso considerar que as primeiras prisões que a gente experimentou foram os navios negreiros. Então se a gente parte dessa premissa, fica muito explícito o caráter racializado dessa instituição.
Não dá perder de vista essa dimensão de quais corpos vão ser os corpos disciplinados, quais vão ser os corpos separados desse convívio social. Então a dimensão racial é indissociável da constituição, da ideia de privação de liberdade que tem na escravidão uma ampla possibilidade de desenvolver métodos de tortura, de controle e de coerção. A partir daí, se a gente pensa na representação da mulher também, foram os primeiros corpos femininos a sofrerem dessa mesma prática do que seria o direito criminal, o direito penal. E a realidade hoje das prisões, ainda que tenha nuances que precisam ser avaliadas a partir de pesquisas empíricas da realidade de cada lugar, de cada estado, de cada cidade. Mas as mulheres negras são tanto as que são mais vítima de violência, como são as que mais são encarceradas. São os corpos que continuam abastecendo as prisões, que continuam sendo vítimas desse sistema de direito penal seletivo.
Pernambuco é um dos três estados que mais têm mulheres encarceradas. De acordo com o Infopen, 70% dessas mulheres são negras e mais da metade foi presa por tráfico de drogas. Como se dá o envolvimento dessas mulheres com o tráfico, especialmente nas periferias?
Existem muitos estudos hoje que dão conta disso. Na Universidade de Brasília (UnB) tem a professora Débora Diniz, que durante alguns anos realizou uma pesquisa no presídio feminino de Brasília, a colmeia. Ela tem um livro publicado sobre isso, “Cadeia”, e nesse trabalho junto com outras pesquisadoras, elas vêm destacando que existe um senso comum que precisa ser melhor debatido sobe essa relação de encarceramento de mulheres e tráfico de drogas. Porque durante muito tempo prevaleceu um discurso de que elas eram presas por tráfico de drogas por estarem sempre numa posição de auxiliar ou de cumplicidade com um homem, seja esse homem seu filho, seu marido, alguém da sua família e por uma necessidade que se atribui talvez natural das mulheres de querer fazer tudo pra salvar e cuidar dos seus homens elas se colocariam em risco para colaborar com esse homens. E as pesquisas dessas professoras que eu mencionei antes vão demonstrar que a gente não pode reduzir a participação à relação entre criminalidade, mulheres e tráfico de drogas, que sempre vai ter um homem que vai ser o responsável pela pela trajetória dessas mulheres. Existem casos que são marcados por essa realidade? Existem, mas a realidade é muitíssimo mais complexa.
Existe uma secretaria executiva de ressocialização aqui em Pernambuco e outros trabalhos que diminuem a pena. Dentro da perspectiva da ressocialização, você percebe alguma dificuldade de acesso a esses projetos?
Essa lógica de associar a ressocialização a atividades economicamente produtivas desenvolvidas dentro do presídio é o modelo mais questionável, porque, se a gente for analisar desde o histórico das prisões, existe uma relação entre cárcere e fábrica. Vários estudos de criminologia crítica vão dar conta de como cercear a liberdade do indivíduo e usar uma mão de obra daqueles indivíduos é um trabalho extremamente lucrativo. Ao produzir dentro de um presídio, você não paga luz, não vai pagar nada porque o poder público vai suprir, você não precisa pagar um salário.
Então, pensar que a única forma de ressocialização de pessoas encarceradas se dá através do trabalho, do uso da força produtiva daquela pessoa, está ancorado numa matriz de controle social.
Como as mulheres, especialmente as negras, sofrem com o encarceramento?
Então, é quando a gente fala de presídio no Brasil, a gente tá falando de uma realidade que a Corte Interamericana de Direitos Humanos e vários outros organismos internacionais reconhecem como algo que está além de violação de direitos. Uma das últimas discussões que a gente teve sobre a ADPF [Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental] 347 vai no sentido de dizer que o que acontece nos presídios no Brasil é completamente inconstitucional, porque é ancorado na violação de direitos.
E, mais uma vez, a gente volta para esse espaço de distanciamento. As prisões continuam sendo esses “quartos de despejo” da sociedade, onde ninguém sabe o que acontece lá dentro.
Edição: Monyse Ravena