Números divulgados em agosto deste ano pelo Ministério da Saúde apontaram dados chocantes sobre estupros coletivos no Brasil. Segundo pesquisas, no ano passado o país registrou 3.526 casos de estupros coletivos, o que em média significa dez casos desse tipo de abuso por dia. Esses números reacenderam a discussão sobre a temática da cultura do estupro, termo bastante debatido no país atualmente e que se refere aos valores e ideias produzidos e reproduzidos pela sociedade que banalizam ou naturalizam práticas de violação do corpo das mulheres.
Segundo a socióloga francesa Colette Guillaumin, a coação sexual é uma prática utilizada para oprimir as mulheres, ameaçá-las, demonstrar sua subjugação nas relações privadas e também públicas. “No espaço privado, nos referimos à norma própria da cultura patriarcal, ainda muito sedimentada na sociedade brasileira, de obrigação do sexo no casamento, o que leva a que muitos casos de estupro ocorram no casamento. Entretanto, gostaria de ressaltar que o estupro não é uma questão apenas cultural, mas uma prática de opressão e dominação material sobre as mulheres; histórica, praticada pelos homens como forma de apropriação do corpo feminino”, explica Verônica Ferreira, pesquisadora e educadora do SOS Corpo - Instituto Feminista para a Democracia e militante feminista do Fórum de Mulheres de Pernambuco (FMPE).
O Código Penal brasileiro tipifica o estupro no Art. 213 com o título dos crimes contra a dignidade sexual. A conduta prevista na referida lei estabelece que o estupro ocorre quando a pessoa é constrangida, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pelas características em que o crime é praticado, o Superior Tribunal de Justiça entende que esse tipo de crime é considerado hediondo, uma vez que é visto como um dos crimes mais violentos e repugnantes à dignidade humana.
Segundo a Secretaria de Defesa Social (SDS) de Pernambuco, 21.256 estupros foram registrados no estado entre os anos de 2006 e 2016. Para a delegada Ana Elisa Sobreira, titular da Delegacia Especializada da Mulher do bairro de Santo Amaro, no Recife, o papel da delegacia da mulher nos casos de estupro é fundamental para ajudar na conscientização feminina sobre a necessidade de denunciar os crimes sexuais.
“Temos a missão de dar total apoio as mulheres vítimas de violência sexual, bem como de orientá-las através dos meios de comunicações, cada vez mais denunciar esses casos para que o poder público possa responsabilizar os agressores. Ao chegar à delegacia é registrado um Boletim de Ocorrência e a mulher vítima de violência sexual será encaminhada ao IML (Instituto Médico Legal) para fazer exame de corpo de delito, bem como a um hospital para realizar exames e receber medicamentos antirretrovirais para impedir a contaminação pelo vírus da AIDS, por exemplo, e a pílula do dia seguinte”, ressalta.
Desde 2011, os dados sobre violências sexuais se tornaram de notificação obrigatória pelos serviços de saúde e são estruturados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde.
O machismo também aparece como um dos grandes causadores desse tipo de agressão, uma vez que a sociedade não educa homens e mulheres como iguais e toda essa desigualdade criada contribui para que a mulher seja vista numa posição de inferioridade. Essa cultura do machismo, semeada muitas vezes de forma velada, coloca a mulher como instrumento de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência, entre os quais o estupro.
A delegada também faz um alerta sobre as práticas que por vezes são vistas como inofensivas por muitos homens, como as cantadas, por exemplo, mas que podem legitimar outras violências, como estupro e até mesmo o feminicídio. “A priori, o homem busca de maneira menos invasiva conquistar a mulher, sendo que como muitos deles não foram educados para respeitar a figura feminina diante de uma resposta negativa, ele pode evoluir de uma simples cantada para uma violência propriamente dita, uma vez que, muitos veem a mulher como objeto e não como pessoa. O que revela um grande problema na construção social desse indivíduo” salienta.
Para Cecília Nascimento, integrante do Coletivo da Marcha das Vadias Recife, há uma naturalização e respaldo social para que as mulheres sejam violentadas. “A partir da lógica da cultura do estupro, os homens são ensinados de que os corpos das mulheres lhes pertencem não é à toa o ditado que diz: ‘prenda suas cabritas que meu bode está solto’, ou seja, quem tem que se proteger são as mulheres, enquanto que os homens não são ensinados a respeitar. Não pode sair de casa com roupa curta, não pode ficar na rua até tarde, tudo para que a gente evite ser violentada. Há uma série de violências que a gente sofre em decorrência da cultura do estupro, como o assédio e outras violências cotidianas”, justifica.
Recife é conhecida pela forte presença de movimentos de mulheres, e novos coletivos surgem a cada ano no enfrentamento ao machismo e a desigualdade de gênero. Um desses grupos é a Marcha das Vadias, que surgiu em 2011, e desde então o combate a cultura do estupro e violência sexual é uma das bandeiras do coletivo.
Cecília acredita que as mulheres precisam criar estratégias coletivas, encontrar saídas para enfrentar o medo. “A gente é ensinada a não confiar em outra mulher, por causa da cultura patriarcal, isso acaba gerando um isolamento. Precisamos construir redes de fortalecimento e de cuidado, como são os coletivos e movimentos de mulheres”, conta.
A luta pelo fim desse tipo de violência existe, mas é necessário que haja uma conscientização para o fato de que a sociedade ainda sexualiza a mulher através de diversos meios. “Uma sociedade em as mulheres são tratadas como objeto sexual, sobretudo as mulheres negras, nos meios de comunicação, nas músicas e até mesmo na literatura e na vida cotidiana, reforça e incentiva a prática do estupro contra as mulheres e a ideia de que o nosso corpo pode ser violado pelos homens”, pontua a pesquisadora e feminista, Verônica Ferreira.
A educação de gênero é uma medida necessária para que a conscientização sobre a importância do respeito às mulheres seja propagada e disseminada pelas futuras gerações. O maior obstáculo para isso ainda é o crescimento do conservadorismo dentro da sociedade que hoje avança no nosso país e, em particular, contra os setores fundamentalistas nos poderes legislativos que querem banir o debate sobre gênero dos currículos escolares.
A educação é muito importante para enfrentar os valores patriarcais que são sedimentados desde muito cedo na sociedade dos meninos e meninas. Entretanto, não é condição suficiente. “Para combater a prática de estupro, precisamos transformar as relações sociais de dominação e exploração dos homens sobre as mulheres. Enquanto não a transformamos, é preciso uma série de ações no plano do Estado, da sociedade, dos movimentos sociais, para denunciar e enfrentar esta violência contra nós mulheres”, reforça Verônica.
Edição: Monyse Ravena