Pernambuco

TERRA

“A reforma agrária não é coisa do atraso”, afirma Jaime Amorim

Dirigente do MST, Jaime Amorim fala da importância da distribuição de terras, da agricultura familiar e da agroecologia

Brasil de Fato | Recife (PE) |
"O moderno hoje é reforma agrária e somado a isso um modelo de desenvolvimento que produza um sistema mais saudável de desenvolvimento"
"O moderno hoje é reforma agrária e somado a isso um modelo de desenvolvimento que produza um sistema mais saudável de desenvolvimento" - PH Reinaux

O Brasil de Fato Pernambuco conversou com Jaime Amorim, dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na entrevista, ele fala sobre a questão agrária, em especial da região Nordeste, e sobre a formação do campesinato no Brasil. Jaime destaca ainda a importância da reforma agrária não só para a população do campo, mas também para quem mora nas cidades.

Brasil de Fato: Como podemos pensar a questão agrária no Nordeste?

Jaime Amorim: Há bem pouco tempo, quando se falava em agricultura no Nordeste, 'se' falava de cacau na Bahia e na cana-de-açúcar. E como é que surge o pequeno agricultor no Nordeste? Ele é parte descendente dessa colonização e da exploração de trabalho escravo. Principalmente, ela vai ser formada com trabalhadores que vêm de Portugal, exatamente para fazer a segurança do trabalho escravo; que vêm 'pra' ajudar nesse processo de exploração e que aos poucos vão fugindo e se rebelando. Uns acabam casando e fazendo família com indígenas, os nativos. Os indígenas se negaram a trabalhar como escravos e passaram a ser exterminados ou a se refugiarem no agreste e no sertão nordestino. Essa foi a primeira base da formação dos camponeses. A segunda foi a base da invasão holandesa em 1630, aproximadamente. Ao vir a guerra e a expulsão dos holandeses, muitos também fugiram e não conseguiram voltar para a Europa e acabaram se refugiando no agreste, e a maioria no sertão do Araripe, formando a partir dali uma nova composição de camponeses. Eles passaram a subsidiar tanto a região cacaueira como a região sucroalcooleira, fornecendo carne, alimento, milho, feijão, começando a fornecer a batata e também animais. Mais tarde, no Piauí e Ceará, entre 1700 e 1800, nós tivemos um desenvolvimento forte da produção de carne, exportando para o Sul do país e para o exterior. Com essa proximidade veio o algodão, o ressurgimento do camponês, do campesino no semiárido brasileiro. Nós chegamos a ter quase 40% da população brasileira vivendo no semiárido no século retrasado; vamos dizer assim: até 1872, que foi quando tivemos a primeira seca.

Como podemos conversar sobre o elemento seca no tema da questão agrária no Nordeste?

A primeira grande seca que se tem ideia é de 1872, onde houve milhares de camponeses mortos e que passaram a sair do Nordeste, buscando outras alternativas, outras fronteiras agrícolas para fugir da seca. Nesse período também surgem as lutas de resistência, e foi justamente no semiárido que 'surge' a primeira luta camponesa; eu diria que uma das primeiras grandes lutas camponesas, porque nós tivemos as lutas libertárias com Zumbi dos Palmares. Vamos ter Canudos, de 1894 a 1897, com a exterminação dos camponeses que lutavam — foram quase 25 mil pessoas assassinadas pelo Exército. Não se falava muito de reforma agrária, mas se falava de luta pela terra. Paralelamente, nós tivemos o cangaço. Claro que o cangaço tem muitos debates, muitas discussões, mas foi, acima de tudo, uma forma de luta contra o latifúndio, uma rebeldia contra o latifúndio. Depois tivemos em seguida, ou paralelamente, o fenômeno de Padre Cícero, que arrastava multidões pelo Nordeste também como uma alternativa de organizar camponeses, de fomentar a luta contra todo esse processo que estava aí, sem muita noção do que era a luta pela reforma agrária, porque ora se aliava com os fazendeiros, ora com o exército, mas o povo que seguia 'ele' seguia buscando um alternativa com fé, contra a seca, contra o latifúndio, contra a violência que dominava e imperava. Esse período se encerra com a luta de Caldeirão Grande, no Ceará, que teve milhares de camponeses mortos. Nós temos a formação dos camponeses nesse período também, já que, a partir de 1930, vem o período da industrialização brasileira. É quando se determina que só tem uma saída para conter a efervescência no Nordeste, que seria esvaziá-lo. A industrialização brasileira cumpre esse papel, retirar o camponês do sertão nordestino. É claro que rapidamente nasceu uma outra fase da luta, as Ligas Camponesas, que os trabalhadores iniciam no litoral; são trabalhadores da cana revoltados com todo esse processo. Por isso, hoje, quando se fala em reforma agrária no Nordeste, 'se' fala reforma agrária no semiárido, 'se' fala reforma agrária na Zona da Mata. Porque a reforma agrária é a alternativa principal de contrapor aquele tripé contra a monocultura agroexportadora, contra o latifúndio, a concentração de terra e contra a forma de exploração escrava que continua até hoje.

Após esse resgate histórico sobre a questão agrária no Brasil, como destacar o momento atual sobre este tema?

De 2016 'pra' cá foram mais de 100 mortes, assassinatos de lideranças do campo. Isso é o latifúndio. Como o governo não tem autoridade para enfrentar o latifúndio, o latifúndio combate os pequenos agricultores e aqueles que estão lutando pela sua causa, pelo seu direito. Infelizmente, o governo não cumpre aquilo que determina a legislação brasileira porque, na verdade, o que nós do movimento fizemos e as outras organizações não é mais do que pressionar o governo para que cumpra sua própria lei. A legislação brasileira deixa isso bem claro: "toda terra improdutiva é passível de ser desapropriação para reforma agrária". Então se tem terra improdutiva, se tem camponês sem terra, é tarefa e obrigação do governo desapropriar. Como o governo não faz por sua própria vontade, até porque o que nós temos hoje dentro do atual governo, da bancada federal, é uma maioria do grande latifúndio atrasado, cabe aos trabalhadores pressionar, organizar, para poder fazer a reforma agrária.

Existe a construção da ideia de que a modernização para o país é agronegócio e que a reforma agrária é algo desatualizado...

A reforma agrária não é coisa do atraso. Não se trata só de distribuir terra, porque tem gente que fica nas universidades ou na imprensa: ‘ah, não cabe mais reforma agrária porque agora é o grande agronegócio, é agronegócio a bola da vez atualmente’, e não é. O agronegócio é o que tem destruído o meio ambiente, produzido doença para as pessoas que o consomem, em função do pacote tecnológico utilizado. O moderno hoje é reforma agrária e somado a isso um modelo de desenvolvimento que possa produzir um sistema mais saudável de desenvolvimento da agricultura, tanto para quem produz, quanto para quem consome e para o meio ambiente. O moderno hoje é fazer agroecologia, e quem pode fazer agroecologia não é a monocultura, não é cana que o usineiro tem 35 mil hectares de terra. Não é o cara que tem 50 mil hectares para criar boi ou 'sei lá' quantos milhões para produzir soja. Eles não vão produzir alimento saudável, vão produzir cada vez mais soja com veneno, carne com veneno, vão produzir mais produtos infectados e a consequência disso é a população cada vez mais cedo tendo AVC, câncer e assim por diante. Então, o moderno hoje na agricultura é você incentivar a agricultura familiar, a reforma agrária, a produção camponesa, produzindo produtos mais saudáveis a partir da agroecologia, a partir da produção orgânica e construindo técnicas novas que possam produzir um produto mais saudável 'pra' população brasileira e essa convivência com o meio ambiente, que é fundamental.

*Transcrição: Vanessa Gonzaga

Edição: Catarina de Angola