Às margens do rio São Francisco, a disputa de terras e a omissão do poder público podem deixar 302 famílias de agricultores sem ter para onde ir. Desde a primeira semana de maio a Polícia Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai) têm visitado famílias de agricultores em quatro comunidades do município de Jatobá: Bem-Querer de Baixo, Bem-Querer de Cima, Caldeirão e Caxiado.
O prazo dado é de 10 dias para se retirarem daquelas terras, que são reconhecidas como Território Indígena Pankararu. O caso se arrasta na Justiça há 25 anos, numa disputa iniciada na década de 1940. Mas para tentar entender essa história, precisamos voltar ao século 18.
Há diferentes versões para a história de ocupação das margens do rio São Francisco, na região do Itaparica, que compreende Pernambuco, Bahia e chega à fronteira de Alagoas. No livro “De Jatobá a Petrolândia – três nomes, uma cidade”, o jornalista Hildebrando Menezes, que viria a ser prefeito de Jatobá na década de 1930, afirma que o povo Pankararu vivia, no século 18, no município de Santo Antônio da Glória (hoje apenas Glória), na Bahia. E que teriam migrado – o autor não sugere o motivo – para o outro lado do rio, chegando à região de Jatobá, em Pernambuco, onde teriam encontrado famílias agricultoras já estabelecidas e mantido convívio harmonioso. Essas famílias de trabalhadores rurais já teriam comprado as terras junto à família Garcia d’Ávila, que por sua vez as herdaram do maior latifúndio das Américas e descendentes de ninguém menos que Tomé de Souza, primeiro Governador-Geral do Brasil.
O escritor Antônio Galdino da Silva, em “De Forquilha a Paulo Afonso”, conta que os latifundiários da família d’Ávila “estendiam seus domínios por quase toda a margem baiana” do São Francisco, expulsando as etnias Tuxá e Pankararu. Enquanto os Tuxá vivem, hoje, dos dois lados do rio, em territórios na Bahia, Alagoas e na pernambucana Inajá, os Pankararu se concentraram em Pernambuco, no território entre as cidades de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá. A versão contada pelos Pankararu é bem próxima. “Estávamos antes dos d’Ávila naquela região”, reclama o cacique Sarapó Pankararu. “Eles, que eram conhecidos como ‘Casa da Torre’, se expandiram na capitania da Bahia por 250 anos, a partir do século 16, escravizando índios para trabalharmos na cana de açúcar e nas criações de gado”, diz Sarapó.
Já Fernanda Bezerra, não-indígena e líder comunitária no Bem-Querer de Baixo, relata o que ouviu de seus antepassados. “Eu vivo aqui desde que nasci, há 35 anos; e meu avô viveu 98 anos aqui. Ele e outros antepassados relatam que estas terras era mata bruta quando chegaram. E que eles, ao perceberem que eram terras férteis, foram criando condições para habitar”.
O relato é endossado pelo diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Jatobá, Eraldo de Souza, “chegamos antes dos indígenas. Vivemos bem, todos juntos. Mas em 1940, quando houve o reconhecimento de terras indígenas, aumentaram 1 légua para dentro de nossas terras”, afirma. Fernanda completa: “o convívio sempre foi pacífico, nossas famílias casam entre si. Mas na época do meu avô chegou a ser mais conflituoso, com ameaças. Mas nunca algo aconteceu, nunca houve morte. Apenas divergências na luta”. Nenhum dos dois agricultores ouviu relatos sobre a compra das terras junto à família d’Ávila.
No ano de 1940, como citado por Eraldo José, os indígenas tiveram o reconhecimento daquelas terras junto ao antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Em relação aos não-indígenas que viviam naquele território, o SPI passou a cobrar pelo uso daquela terra, ou seja, o Estado arrendou terras que ele mesmo reconhecia como território indígena. “O governo estava extorquindo essas famílias em vez de reassentá-los”, avalia o cacique Pankararu. São 8,1 mil hectares de território Pankararu, dos quais 20% estão habitados por não-indígenas.
A homologação do reconhecimento daquele território só veio em julho de 1987. E seis anos depois, em 1993, foi movida a ação judicial pedindo a retirada dos ocupantes não-indígenas. A sentença favorável só veio 10 anos depois, em 2003. A Justiça estabeleceu que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realocasse essas famílias para outro assentamento já estabelecido, que fosse equivalente ao que elas vivem hoje. E as famílias deveriam ser indenizadas pela Funai, já que realizaram benfeitorias naquelas terras.
“Se naquela ocasião as famílias não se retiraram, não foi por teimosia ou desobediência”, diz Fernanda, que integra comissão formada para reivindicar junto ao Estado a garantia dos direitos dos agricultores. “A Funai nunca indenizou as famílias e ainda nos acusou de agir de má-fé por termos construído mais benfeitorias ao longo dos anos”, afirma a liderança. Eraldo afirma que “o Incra nunca moveu uma palha”.
Foto: Jonison Kabeça
Em 2010 o caso foi transitado em julgado após o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) dar causa ganha novamente para os Pankararu. Uma audiência em 2011 definiu a criação de grupos de trabalho para negociar valores e pagamento das indenizações, que mantinham o valor de 1994. Mas o valor atualizado pela Funai ainda está longe de atender às expectativas dos trabalhadores que dedicaram a vida àquelas terras.
“A indenização é irrisória, de R$1.000 apenas. Sem contar que dessas 302 famílias, apenas 175 serão indenizadas, enquanto outras 127 não receberão nada”, denuncia Fernanda. “Precisamos que os órgãos respaldem o nosso direito de viver em condições similares. Queremos ter uma vida digna”.
A situação ainda se arrastou sem resolução até fevereiro de 2017, quando o juiz federal Luiz Felipe Mota Pimentel de Oliveira, da 38ª Vara Federal, em Serra Talhada, deu seu parecer reforçando a sentença de 2003. O juiz deu um ano, até fevereiro de 2018, para as mais de 300 famílias se retirarem das 4 comunidades. Apenas 5 famílias aceitaram o recurso da Funai e saíram. Este ano o prazo foi estendido por mais 45 dias e, no fim de abril, o juiz Felipe Mota autorizou a reintegração de posse dentro de 10 dias. Foi quando a Polícia Federal passou a visitar as casas.
Em sua decisão, o jurista alega que “a questão se arrasta por décadas” e que, por isso, a saída dos não indígenas “é medida que se impõe sem mais delongas”, decidindo ainda suspender as audiências agendadas para melhor debater o caso e a situação das famílias de agricultores. A postura tem incomodado os agricultores. “Ele tem sido muito intransigente, inflexível. Sabemos que ele tem que cumprir as leis, mas é preciso uma razoabilidade. O caso não pode ser encarado só com a frieza da lei, porque a lei não está acima da dignidade da vida humana. Sentimos falta de dialogar com o Estado”, reclama Fernanda.
O sindicalista pede o cancelamento da decisão judicial. “A terra pode ser indígena, não queremos que cancele isso. Mas essa decisão nos colocando para fora de imediato, precisa ser cancelada. A gente vai para onde? Para a beira da estrada? Para baixo de uma ponte?”, questiona Eraldo. “Quem vai assumir a garantia dos direitos dessas famílias? É o Incra? A Casa Civil? precisamos saber. Por enquanto estão todos omissos”, cobra Fernanda.
Ainda no ano passado, o Incra definiu que as famílias iriam para o Assentamento Abreu e Lima, com 18,5 mil hectares, mas que fica longe do rio São Francisco, entre as cidades de Tacaratu e Ibimirim. O dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais descreve a área como “improdutiva”, “sem água, sem nada”, um “assentamento falido”. Eraldo destaca ainda que são apenas 93 lotes, enquanto são 302 famílias. Fernanda diz que o Abreu e Lima “não atende o que diz o decreto, que deveriam ser terras equivalentes”, reclama. “Não podemos deixar nosso solo fértil para ir para uma terra infértil. O principal não são os valores de indenização, mas de dar as condições para vivermos. Somos agricultores, não fazendeiros. Não podemos deixar para trás tudo o que temos”, diz.
Apesar da vitória judicial, o cacique Sarapó Pankararu lamenta a situação de seus vizinhos. “Queria que saíssem para um local onde pudessem produzir e sustentar suas famílias, mas nosso governo não tem dado essas condições. Isso já poderia ter sido resolvido há muito tempo”, diz o indígena. “Não acho certo e nem justo o que o Estado brasileiro faz com nossos povos, nos coloca para brigar um contra o outro. Não me alegro e nem me orgulho dessa situação”, pontua.
Os trabalhadores rurais reivindicam que o Incra encontre uma terra produtiva no município de Jatobá para que eles sejam reassentados e possam continuar trabalhando e produzindo, sustentando suas famílias e vivendo com dignidade. “Estamos dispostos a sair, mas que seja para outra terra aqui na nossa cidade”, diz Eraldo. Ele conta que já há outra terra em vista. “Já pegamos o aval dos homens que querem vender suas terras, mas o Incra é falido, não tem dinheiro para comprar, e fica nos oferecendo uma terra inviável”, relata. Hoje as agricultoras e agricultores das quatro comunidades produzem feijão, macaxeira, milho e frutas da região, como murici e umbu; além de manterem uma pequena agroindústria de polpa de frutas, coordenada por mulheres. Tudo é produzido de maneira agroecológica, sem transgênicos e sem venenos agrotóxicos. Além disso, cobram uma indenização justa e para todos, reconhecendo as benfeitorias realizadas naquelas terras. “Vamos ter uma perda social também, não só econômica ou de terras. Estamos sendo retirados de nossas comunidades de origem, onde nascemos e vivemos”, diz Fernanda.
Em visita aos agricultores em Jatobá, o presidente da Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco (FETAPE), Doriel Barros, reclamou que é inadmissível “que essas pessoas sejam colocadas em qualquer lugar, sem condições necessárias para continuarem vivendo e trabalhando”. O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT Pernambuco), Carlos Veras, após visitar as comunidades, foi à Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) pedir que os deputados e o Governo do Estado atuem junto a essas pessoas. “São mais de 1.200 pessoas sendo colocadas para fora de suas casas, sem ter para onde ir. O Governo está ausente nesse processo. Os deputados também precisam ajudar”.
Fernanda Bezerra se queixa ainda das visitas da Polícia Federal e Funai. “Eles estão nos notificando verbalmente, mas acho que é necessária uma notificação documentada, em papel. E pergunto: se a Funai pode acompanhar a PF nas nossas casas, por que o Incra também não está lá, para nos orientar e nos ouvir?”. Ela relata casos de agricultores passando mal durante as visitas, dentre os quais muitos idosos, alguns deficientes como a própria Fernanda, além de jovens e crianças assustados. No último dia 1º de maio os trabalhadores rurais realizaram um ato em Jatobá. E na última semana realizaram uma vigília de 4 dias na igreja da comunidade do Bem-Querer. A agricultora diz ainda que esta semana o delegado federal se fez presente e está abrindo diálogo com as famílias, que estão esperançosas num entendimento.
Edição: Monyse Ravenna