Apesar da onda conservadora de direita que tomou o Brasil e elegeu Bolsonaro para a Presidência da República, a região Nordeste formou uma "ilha" em que o bolsonarismo teve muitas dificuldades para penetrar. Já no primeiro turno 50,6% dos votos válidos do Nordeste foram para Fernando Haddad (PT), contra apenas 34,8% de Jair Bolsonaro. No segundo turno a diferença se ampliou e a votação de Bolsonaro até recuou percentualmente, ficando em 30,3%, contra 69,7% de Haddad. Mas por que a região foi tão resistente à agenda representada pelo ex-militar?
Na opinião do mestre em economia e doutor em ciência política Pedro Lapa, um dos fatores de análise é o apego que a população do Nordeste tem ao ex-presidente Lula (PT) e ao que ele representa para as camadas mais pobres da região. "A renda média do Nordeste é metade da renda média do Brasil. Aqui estamos em maior proporção na base da pirâmide social. Independente da eleição, o Nordeste é diferente do Brasil porque aqui as desigualdades são mais acentuadas", alerta.
E, segundo Lapa, foi Lula quem permitiu que a população mais pobre pudesse se afastar das amarras das elites e setores médios da região. "Aqui as estruturas públicas são muito controladas pelas elites, que sempre impuseram uma relação extremamente dura e impiedosa com os trabalhadores, de muita subordinação, como se as ações do Estado fossem favores para o povo", diz o economista pernambucano. "E foi na presidência de Lula que a natureza dessa relação mudou", completa.
Ele considera ainda que a rede de proteção social, que tem o Bolsa Família como maior símbolo, tem um papel na construção da imagem de Lula, mas não é o principal. O formato do Bolsa Família é um exemplo. "Nesse programa a população não depende mais do cabo eleitoral, do prefeito ou do coronel. A pessoa tem um cartão e vai diretamente na Caixa Econômica Federal. É uma relação em que o Estado tem mais respeito pelo trabalhador", afirma Pedro Lapa. "O carinho e a força dessa relação com Lula advém disso", avalia.
O economista também aponta o direcionamento de obras de infraestrutura para o Nordeste, como a duplicação da BR-101 de Aracaju a Natal e o complexo industrial de Suape, como fator que gerou muitas vagas de trabalho na região. "Isso tudo mexeu com o imaginário do nordestino. Não é apenas porque Lula é do Nordeste ou porque se comunica bem com a classe trabalhadora, mas porque sua gestão transformou a região", afirma Lapa.
Olhando estado por estado, no primeiro turno Haddad venceu em oito dos nove estados do Nordeste. Apenas no Ceará o petista ficou em segundo: o vencedor foi o cearense Ciro Gomes (PDT). No segundo turno, nova derrota bolsonarista: o candidato do Partido dos Trabalhadores venceu em todos os estados da região. Bolsonaro teve melhor resultado em Alagoas, onde alcançou 40,1% contra 59,9% de Haddad; enquanto a maior diferença se deu no Piauí, onde o ex-militar teve apenas 23% contra 77% do professor universitário.
Além disso, os nove governadores eleitos no Nordeste foram os candidatos apoiados por Lula: Wellington Dias (PT), Camilo Santana (PT), Fátima Bezerra (PT), Rui Costa (PT), Paulo Camara (PSB), João Azevedo (PSB), Flávio Dino (PCdoB), Renan Filho (MDB) e Belivaldo Chagas (PSD). Desses, sete foram eleitos já no primeiro turno - as exceções foram Sergipe e Rio Grande do Norte, cujas vitórias só vieram na votação do dia 28 de outubro, com 64% e 58% respectivamente.
Capitais
Mas, o cenário muda ao fazermos o recorte apenas das cidades grandes. No primeiro turno Bolsonaro obteve liderança em cinco (Recife, João Pessoa, Maceió, Aracaju e Natal) das nove capitais nordestinas, enquanto Haddad venceu em três (Salvador, São Luís e Teresina) e Ciro em uma (Fortaleza). No segundo turno Haddad conseguiu "virar" mais três capitais (Recife, Fortaleza e Aracaju), vencendo em seis, contra três que permaneceram com Bolsonaro (João Pessoa, Maceió e Natal).
Na avaliação de Lapa, o voto conservador nas capitais se dá por três motivos. O primeiro deles é que as igrejas neopentecostais têm um grande enraizamento nas periferias dos grandes centros urbanos e, em sua maioria, levam os fieis a votarem em seus candidatos conservadores. Ele acrescenta ainda que a própria estrutura das cidades grandes descende das oligarquias e dos coroneis. "Então, uma parcela de no mínimo 25% ou 30% da população vota com o conservadorismo, não é novidade", avalia.
Um segundo motivo é econômico - e este diferencia algumas capitais de outras. "Algumas regiões metropolitanas possuem estrutura econômica diversificada de indústria e serviços, o que faz o peso dos empregos da estrutura do Estado ser relativamente menor", diz Pedro Lapa. Dois exemplos são Recife e Salvador. Nessas cidades o conservadorismo não tem tanta força. Mas também há regiões metropolitanas sem essa estrutura, como João Pessoa e Natal, de modo que o peso da atividade econômica ligada ao Estado é muito grande. "Esse trabalhador tem um perfil muito próprio, normalmente uma classe média conservadora", diz Lapa.
O terceiro motivo apontado pelo economista é relativo à qualidade de vida do trabalhador urbano. "As características das relações de trabalho no Nordeste são mais precárias que no Sul e Sudeste. O deslocamento de casa para o trabalho é um exemplo", pontua. "São pessoas que enfrentam jornadas diárias longas, com pouca ou nenhuma vida social, então esse trabalhador não possui mecanismos associativos, em sua grande maioria não são sindicalizados. Portanto, são pessoas com pouco acesso a informação, mas que têm acesso a celular e, consequentemente, são muito vulneráveis às campanhas de notícias falsas", alerta Lapa.
Edição: Monyse Ravenna