Em entrevista ao programa Revista Brasil de Fato, que foi ao ar na Rádio Frei Caneca, o vocalista e principal compositor da banda Mundo Livre S/A Fred Zero Quatro falou sobre o cenário musical brasileiro desde a Ditadura Militar, movimento Manguebeat e analisou a política brasileira e o papel exercido pelos veículos de mídia comercial no país.
Fred é um crítico ao sistema neoliberal e iniciou sua atuação política ainda durante a graduação no curso de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Anos mais tarde, largou o jornalismo para assumir uma postura mais profissional na música. Para ele, que foi jovem durante a ditadura e tinha fortes lembranças de um período onde grandes compositores ocupavam as paradas musicais, aquele cenário cultural teve grande referência na sua formação. “Você pega Caros Amigos, um disco emblemático de Chico Buarque, discos de Caetano, Gilberto Gil. Uma música que fez minha cabeça, quando eu tinha uns 12 ou 13 anos, foi Ouro de Tolo, de Raul Seixas, com ironias em torno do consumismo, da alienação da classe média e, mesmo enfrentando todo um ambiente de censura, foi uma das músicas mais tocadas naquele ano” relembra.
Para Fred Zero Quatro, é muito estranho que, em momentos de crise política como o que vivemos atualmente, a música não viva um momento de efervescência. "Uma grande marca da música brasileira é como um vetor de resistência nos tempos mais dramáticos da vida social e política. Estranhamente, desde que houve o golpe de 2016 e as primeiras movimentações da elite em torno de se construir uma possibilidade de ruptura do processo democrático, você não viu nesse período mais recente uma mesma efervescência de escritores, autores, compositores, expressando, criando, lançando coisas e, até mesmo, considerando que não existe uma censura prévia como existiu no período militar”, observa. É esse diálogo entre arte e política que ele tem buscado em seus trabalhos.
Dança dos Não Famosos
Em 2017, a Mundo Livre S/A resolveu dar início ao projeto de um novo disco, posteriormente intitulado “Dança dos Não Famosos”. Mantendo as raízes, mas apresentando novidades, o músico conta que experimentou substituir seu famoso cavaquinho pelo piano. Antenado na conjuntura política conturbada do país, Fred conta que não conseguia me enxergar trabalhando em cima de temas que não dialogassem com a realidade nacional. De acordo com o cantor, o processo de pré-produção foi muito intuitivo e o conceito do novo projeto foi surgindo espontaneamente.
Durante os ensaios, as batidas envolventes e os grooves contagiantes das novas composições, ideais para a pista de dança, remeteram ao quadro “Dança dos Famosos” do programa global Domingão do Faustão. Fred explica que, a partir dessa associação, o conceito crítico do álbum foi sendo definido: “esse programa é um dos maiores emblemas da alienação da classe média, da emissora estandarte de todo esse processo de construção de ódio e intolerância na sociedade”.
Ao mesmo tempo, os músicos resolveram fazer um paralelo com a repressão policial sofrida por manifestantes no Brasil em 2017, com destaque o estudante Mateus Ferreira da Silva, que sofreu um traumatismo cranioencefálico (TCE) quando um cacetete rompeu em sua cabeça após golpe desferido por um policial, em Goiânia. “Essa imagem, quando retomei a ela, vi que no flash que ficou mais celebrizado na imprensa ele [Mateus] parece estar dançando. A imagem desse episódio parece realmente uma grande coreografia dramática. É esse o momento da Dança dos Não Famosos na televisão”, esclarece Zero Quatro.
A imagem de Mateus sendo agredido ilustra a capa do álbum da banda. Ainda imerso no conceito do disco, o músico afirma que o golpe sofrido pelo rapaz foi uma “videocassetada”, montada pelas elites política e econômica do país: “Videocassetada em forma de supressão de direitos, das garantias trabalhistas, das liberdades, opressão das minorias. Tudo isso faz parte desse processo que a gente meio que tentou retratar dessa forma”.
Manguebeat
Na década de 1990, Fred Zero Quatro foi um dos artistas que assinou o Manifesto dos Caranguejos com Cérebro, marco do movimento Manguebeat para Pernambuco. Após 10 anos em carreira amadora como banda de garagem, a Mundo Livre S/A gravou seu primeiro álbum de estúdio, em 1994, logo depois da estreia do movimento no Abril pro Rock. A aproximação com outros expoentes do movimento, como Chico Science, Lúcio e Jorge do Peixe veio ainda antes da formação da Nação Zumbi.
“Não existia empresário, gravadoras, festivais, palcos... Inventamos um evento chamado viagem ao centro do mangue e foi tudo feito na base de cooperação e parceiras, porque não existia produtora profissional alternativa” relembra Fred.
Ainda segundo o cantor, toda a estética característica do Manguebeat foi construída intuitivamente: “A gente foi cavando espaço e construindo um universo, um vocabulário, gestos, identidade visual, de forma completamente espontânea e autônoma. O próprio público vinha com ideias também”.
Democratização da Mídia
Durante a entrevista, Zero Quatro também se declarou favorável a uma Lei de Meios para a regulamentação da mídia. “Sempre usam de uma narrativa completamente manipuladora de tentar associar esse tipo de postura com censura, com uma coisa autoritária, de querer tolher a liberdade, de querer controlar a informação”, afirma.
Para o artista, também as redes sociais possuem um papel importante no momento atual, contudo também é preciso ter cuidado com o poder da inteligência artificial. “Se, por um lado, a gente festeja o fato da narrativa da mídia oligopólica não ser mais tão hegemônica, por outro a internet é um terreno muito fértil para todo tipo de linchamento e Fake News. Democracias sólidas têm sido hackeadas por empresas especializadas em manipular algoritmos”, analisa. Fred defende que se use todo o potencial atual para a criação de redes globais de reação. “A gente está nesse processo agora emblemático onde finalmente, depois de um período de apatia, parece que pelo menos uma categoria importante e expressiva da população começa a ver necessidade urgente de afirmação. Para o mundo, está muito claro o que está acontecendo hoje no Brasil”, conclui.
Edição: Monyse Ravenna