Aproximadamente um milhão de pessoas estiveram envolvidas em conflitos no campo em 2018. Em 2017, os números beiravam os 700 mil. É sobre esse tema que conversamos com João do Vale, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em entrevista no Programa Brasil de Fato Pernambuco.
Brasil de Fato: Como contar a história dos conflitos pela terra no Brasil?
João do Vale: A história do Brasil, na verdade, é a história do conflito pela terra. Desde que os portugueses invasores chegaram aqui e na América Latina, se inaugurou a guerra pelo território. É como se o Brasil tivesse sido pensado como um mercado, um lugar para ser explorado. Eles viram no Brasil, que já tinha dono e ainda tem, que são os povos indígenas, um local para retirar essas mercadorias e é aí que inicia o conflito pela terra.
BdF: Como esses conflitos se manifestam nos dias atuais?
João: A primeira coisa é que no Brasil tem muita terra sem gente e muita gente sem terra. Quanta gente não tem terra pra viver ou vive em um pedaço bem pequeno, enquanto em regiões como na zona da mata os latifúndios, os engenhos são imensos e pertencem no papel e às vezes nem nele a uma só pessoa. O conflito pela terra ocorre quando essas pessoas ricas, com dinheiro e poder e também o Estado expulsam os camponeses, que são obrigados a sair da terra onde vivem e também tiram o seu sustento.
BdF: Desde quando a CPT produz o Caderno de Conflitos no Campo e quais dados chamam mais atenção?
João do Vale: Desde 1985 a CPT produz esse documento chamado de Caderno de Conflitos no Campo e ele sistematiza os conflitos do campo no Brasil. De 1985 até hoje foram mais de 1900 mortes causadas por conflito. Esse número não é de latifundiário, dono de engenho, político famoso, então essas pessoas que morreram no campo eram trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas ou pessoas que acompanhavam essa luta, como advogados, membros de igrejas, associações ou movimentos populares. Desse número, apenas 8% foram investigados, então é um absurdo e isso revela que o Estado brasileiro é totalmente omisso.
BdF: Dentro desses dados, quais são os números em Pernambuco?
João: Pernambuco está entre os cinco estados mais violentos para o campo no Brasil. Quando se fala em violência no campo estamos falando de assassinato, ameaças, grandes obras, expulsões, tortura, sequestros, é muita coisa. Falar de violência no campo é falar de morte, mas não é a física, mas também da cultura, do território, dos modos de vida. Então, a violência também se dá pelas grandes obras como Suape, a transposição do Rio São Francisco e agora o governo Bolsonaro, que quer implantar uma usina nuclear em Itacuruba, que é mais um projeto de morte no campo brasileiro.
BdF: Como a violência atinge as comunidades tradicionais como as quilombolas, indígenas, pesqueiras e outras que vivem num mesmo território por séculos?
João: O campo é o que nós chamamos de zona de sacrifício. Essa usina e outras obras existem não porque os camponeses precisam. Para os grandes empresários é preciso que a zona rural, o sertão e o nordeste se sacrifiquem para que as grandes empresas do sudeste tenham energia elétrica, no caso da usina. O campo brasileiro para as comunidades tradicionais não é uma mercadoria, existe uma relação de afetividade, espiritual, é onde os ancestrais dessas pessoas estão enterradas, onde eles plantam, criam seus animais, enquanto para as empresas e o Estado essa mesma terra é uma mercadoria.
BdF: A disputa pela terra é também uma disputa pela água. Aqui no estado temos exemplos de expulsão ou ameaças por causa de água ou terras que estão próximas a canais de água?
CPT: Nós da CPT trabalhamos bastante com o conceito de território, que é onde uma comunidade vive e exerce sua plenitude. Onde caçam, plantam, pescam. Então muitas vezes o território não é a terra e sim a água. Muitos povos indígenas afirmam que o seu território é a água, o rio. No caso de Suape, muitos pescadores artesanais que vivem há gerações ali não conseguem mais pescar por causa dos navios e do porto, por exemplo.
BdF: Quais os pontos mais críticos de conflito em Pernambuco e o que pode ser feito para resolvê-los?
João: Pernambuco, apesar de estar entre os cinco mais violentos, não é muito diferente do panorama no Brasil. Uma das primeiras coisas pra mudar é repensar o nosso modelo de país, pensando ele também a partir do campo, porque, até então, o discurso é de que o campo deve produzir apenas o que a cidade precisa. Além disso, o campo é o lugar do atraso, das pessoas que não sabem ler e escrever, é um lugar que precisa de modernidade, e essa modernidade sempre que chega no campo é pra violentar, matar, expulsar, ela nunca serviu para o povo do campo. O grande desafio é pensar um modelo para o Brasil e a América Latina onde o campo possa pensar por ele e sobre ele.
Edição: Monyse Ravenna