Uma onda conservadora tem ganhado força em todo o mundo. Na América Latina, governos de esquerda tem dado lugar a representantes que utilizam do conservadorismo em suas campanhas e que tem ampla propagação pelo fundamentalismo religioso. Discursos racistas e contra os Direitos Humanos, em especial das mulheres e da população LGBT, se propagam ampliam nesse contexto. No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) integra esse fluxo global, reforçado pós o golpe de 2016. Movimentos como o feminista e de povos tradicionais tem sido alguns dos mais perseguidos.
Esse processo tem contribuído para que cada vez mais diversos setores da sociedade repensem suas estratégias e dialoguem sobre suas formas de atuação. Além do resgate de ações de enfrentamento e resistência já sendo acumuladas. “Estamos vivendo de uma outra maneira aquilo que o nosso povo, infelizmente, já conhece. Nossa tristeza é de ver que a nossa sociedade precisa se fortalecer para reagir da mesma maneira que nós resistimos. Eu, Vera não estaria aqui se não fosse a resistência de nossos ancestrais, que lutaram para que pudessem ver a liberdade e a dignidade ser algo que servisse a todo mundo”, dise Vera Baroni, Yábassê do terreiro Ylê Obá Aganjú Okoloiá e integrante da Rede de Mulheres de Terreiro de Pernambuco, durante abertura do curso Caleidoscópio: Corpos livres, Estado laico – Feministas contra o fascismo e o fundamentalismo.
O evento foi promovido pelo SOS Corpo – Instituto Feminista para Democracia, realizado no Recife, entre os dias 11 e 13 de julho, e compõe um processo de formação realizado pela organização, através de diálogos entre mulheres. Nesta edição, o avanço do fundamentalismo e fascismo e os riscos que representam à democracia e à vida das mulheres foi o tema central. Também estiveram presentes na abertura do curso a Pastora presbiteriana Sônia Mota e a teóloga feminista Ivone Gebara.
Nesse contexto, Vera Baroni também chamou atenção para como o fundamentalismo tem se expressado no ataque às religiões de matriz africana. “Esse é um momento de destruição, de violência acentuada onde as pessoas do Terreiro são obrigadas a quebrarem seus símbolos, a saírem de suas comunidades. Isso não acontece, até onde saibamos, com nenhuma outra forma de crença”, disse. “O Rio de Janeiro é cidade onde isso está mais violento, porque houve uma junção de narcotraficantes com neopentecostais”, pontuou. Ataques a terreiros de Candomblé e Umbanda têm sido cada vez mais constantes no Rio de Janeiro por ação de narcotraficantes que se dizem evangélicos. Lá, o prefeito Marcelo Crivella (PRB) autorizou, em 2017, a construção pela Igreja Universal de templos “ecumênicos” dentro de presídios, acentuando o debate sobre a laicidade do Estado e a relação entre o fundamentalismo religioso com a política.
“Por que as religiões incomodam?”
A pergunta é da teóloga feminista Ivone Gebara, também conselheira das Católicas pelo Direito de Decidir, “porque não estamos em uma democracia, vivemos uma democracia nominal. Uma democracia real exige também a distribuição e redistribuição dos bens econômicos, culturais e simbólicos, temos nominalmente uma democracia, mas não de fato”, disse Ivone. Para ela é necessário se discutir a laicidade do Estado, mas entendendo que o Brasil é um país religioso e que política e religião caminham juntas, e esse é um aspecto importante para basear a discussão do momento que vive o País. “O Estado não precisa ser religioso, mas pode abrir espaços para que isso se manifeste”, disse.
“Vou pedir que nos desarmemos e que evitemos a caricatura de que evangélico é sinônimo de fundamentalismo e que são os únicos responsáveis pelo que estamos vivendo. Vamos assumir que vivemos em uma sociedade violenta, machista, homofóbica, racista e que posturas fundamentalistas estão presente em todas as tradições de fé, inclusive em nossos movimentos. Claro que em alguns espaços mais do que outros e que discursos religiosos podem contribuir para disseminar esses e outros preconceitos.”, destacou a Pastora Sonia Mota, que também é Diretora Executiva da Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE). “
Sonia alerta para o aumento dos discursos contra a população evangélica, de forma geral, responsabilizando a religião protestante pelo avanço do conservadorismo que também tem tomando conta do debate político no País. Mas alerta que a fé e concepções religiosas tem sido utilizadas para interesses políticos. “Temos uma sociedade polarizada por esse fundamentalismo religioso que se une ao fundamentalismo político e econômico para colocar um freio, sobretudo a nós mulheres. O fundamentalismo que hoje nos assusta, e que faz a gente se encontrar cada vez mais para conversar sobre ele e que não é um fenômeno atual ele tem histórias, recursos comunicacionais e simbólicos para manter o poder econômico, político e religioso, para manter privilégios e formatar e disciplinar a vida e o corpo das mulheres.”, pontuou.
Como enfrentar esse momento, resistir aos ataques e se articular para mudanças foram elementos trazidos nas falas das religiosas, em especial para as mulheres. Sonia mota reforça que na contramão do fortalecimento do fundamentalismo, Igrejas e outros grupos religiosos tem se organizado. “As comunidades religiosas podem ser espaços importantes de acolhida e resistência. Talvez tenhamos muito de religião e pouco de fé. Surgem novos movimentos feministas cristãos no Brasil que tem assumido com coragem a agenda contra a violência e o racismo”, afirma.
Vera Baroni afirma que as comunidades de terreiro estão articuladas, em especial as mulheres, para que o ataque a essas expressões religiosas não sejam naturalizados. “Vamos convocar instituições como o legislativo, o judiciário, a Defensoria Pública e a OAB para exigir nossa proteção e defesa. As instituições tem obrigação de nos proteger, pois somos cidadãos brasileiros”, lembra. E Ivone Gebara resgata as conquistas que o movimento feminista tem acumulado ao longo de sua trajetória. “Tem milhares de grupos de mulheres nesse mundo que estão tentando outros caminhos e, embora não haja reconhecimento oficial, nós continuamos sustentando a vida, e essa sustentação tem que fazer parte de uma espiritualidade feminista, que nutra a gente, que não tem que abraçar essa ou outra religião, mas algo que ajude a sustentar esses e outros tempos difíceis que estamos vivendo”.
*Catarina de Angola integra o Terral Coletivo de Comunicação Popular. Este texto faz parte de cobertura colaborativa entre o Terral, o Marco Zero (Débora Britto) e o Brasil de Fato PE (Monyse Ravenna).
Edição: Monyse Ravenna