Pernambuco

DEMARCAÇÃO

Opinião | A sobrevivência indígena no Estado genocida: acima do medo, a coragem

A luta pela terra foi e continua sendo hoje a maior pauta da luta indígena

Brasil de Fato | Recife (PE) |
A luta pela terra foi e continua sendo hoje a maior pauta da luta indígena
A luta pela terra foi e continua sendo hoje a maior pauta da luta indígena - Mídia Ninja

Na data da invasão ao território nacional, segundo alguns estudiosos as populações indígenas se davam em torno de cinco milhões de indivíduos. Com a chegada dos colonizadores se iniciou o processo de dominação de forma sangrenta e, consequentemente, um verdadeiro genocídio contra os povos indígenas. Mesmo depois de inúmeras investidas contra os povos originários, os mesmos ainda se somam em 816 mil indígenas, de 331 etnias, falando 164 línguas, conforme senso de 2010 do IBGE. Dentre esta população há uma estimativa que seja 40% sejam jovens.

Há diversas formas de genocídio no Brasil. Há o genocídio institucional, praticado por ruralistas, pela bancada evangélica e por grandes empreendimentos. O genocídio sangrento, que é também praticado pelos ruralistas e ocasiona mortes tais qual a do líder indígena no Amapá, Cacique Emyra Waiãpi. O genocídio epistemológico que concebe e legitima a hegemonização e universalização do conhecimento científico, a partir do viés eurocêntrico. Há ainda o etnocídio, o qual se dá no apagamento da identidade daquela pessoa pelo que ela é, pelo que ela foi e pelo que ela projeta ser.

O elevado índice de suicídio é proveniente dessas formas de genocídio de uma sociedade que torna invisível ou selvagem a identidade indígena e atua entre o matar e o deixar morrer. A constante violência e evidente falta do devido respeito à especificidade e diversidade cultural só agrava ainda mais o psicológico dos jovens indígenas. A falta de respeito e de preservação aos espaços sagrados, através da demarcação do território do povo originário – território de ambiente equilibrado e onde seja possível a difusão dos saberes tradicionais e culturais – é nada mais nada menos do que ocasionada por um Estado capitalista que protege o interesse das grandes fortunas e do capital financeiro nas mãos do homem branco, detentores de bens e sujeitos políticos.

Cabe inclusive a esses homens brancos fortalecerem o imaginário de que no mundo atual não há espaço para a diversidade e para a diferença, rejeitando em razão de premissas preconceituosas a performance da pessoa indígena nos meios urbanos, tratando-a de forma excludente, sem respeitar suas tradições e sua cultura para, assim, impossibilitar que atue e seja reconhecida, também, enquanto sujeito político

A luta pelo território indígena

Além de impedir e impossibilitar que a pessoa indígena exista no meio urbano com respeito às suas tradições e à sua cultura, há também um avanço cada vez mais sangrento e impiedoso contra as terras sagradas dos povos originários, tanto com a matança pelas mãos dos garimpeiros, quanto pelo apagamento da identidade indígena causado pela evangelização dos povos tradicionais.

Se antes eram os colonizadores portugueses os responsáveis pelo esbulho e pela invasão das terras indígenas, hoje os atores são os agentes políticos, agronegócio e grandes empreendimentos que inauguram novas formas de genocídios e etnocídio contra os povos indígenas.

A luta pela terra foi e continua sendo hoje a maior pauta da luta indígena. Apesar da ausência do Estado nesses processos de reconhecimento dos territórios indígenas e do avanço do agronegócio, os povos originários encontram maneiras de resistir e garantir a posse da terra, com a utilização de estratégias de lutas para a permanências nos seus espaços sagrados. Através da autodemarcação os indígenas desenvolvem de forma muito exitosa a preservação dos seus saberes tradicionais e fazem a gestão territorial e ambiental da área ocupada por eles.

No entanto, a ausência do Estado e de uma demarcação “formal” não permite que sejam implementadas políticas públicas diferenciadas que garantam e protejam os territórios e as pessoas que ali habitam. Sabe-se, por exemplo, que na região Nordeste, Centro-Oeste e Sul, 82% dessas terras não estão demarcadas e, por isso, não há implementação das políticas públicas necessárias para a preservação da cultura, saúde, soberania alimentar e educação dos povos indígenas.

Soma-se a isso, ainda, o enfrentamento direto com ruralistas, madeireiras, garimpeiros e grandes empreendimentos.

Embora constitucionalmente o território seja o espaço que garanta a reprodução sócio cultural dos povos originários, a impossibilidade de viver nas terras sagradas impede que os indígenas desfrutem desse direito. No caso do povo Tuxá, de Rodelas, na Bahia, agora em 2019 completaram-se 32 anos de expulsão de seu território tradicional para a implementação de uma barragem pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf). O que era para ter sido um rápido processo de reassentamento se tornou um longo processo de luta contínua do povo Tuxá pelo direito a viver novamente sobre uma terra reconhecidamente sua.

A morosidade do sistema judiciário, aliado a pressão de grandes fazendeiros da região dificultam o andamento do processo e colocam aos povos originários a difícil tarefa de sobreviver sem as condições mínimas garantidas. O Estado, ao se recusar a entender/proteger a relação dos indígenas com o meio em que vivem pratica o genocídio de forma obscura, disfarçado de morosidade na demarcação das terras ou colocando em dúvida a legitimidade dos processos, produzindo, com isso, não só o acesso ao território, mas a todos os demais direitos que só são garantidos através do território reconhecido.

Os retrocessos no governo Bolsonaro

            Embora a pauta indígena sempre tenha sigo negligenciada pelo Estado brasileiro, certamente no último ano os garimpeiros, fazendeiros e ruralistas passaram a se sentir mais confortáveis para avançar contra os territórios – e os corpos – dos povos indígenas. Isso vem, evidentemente, da posição aberta do atual presidente do Brasil no sentido de defender a mineração em terras já demarcadas ou em vias de demarcação.

            Na perspectiva do novo governo brasileiro, a demarcação impede o crescimento econômico no País. Mais de uma vez Bolsonaro afirmou que as mulheres e homens indígena deveriam ser integrados à sociedade branca para adquirir cidadania plena, trazendo um ideia assimilacionista (assimilação de uma cultura periférica por uma cultura dominante) implantada na ditadura militar e agora reavivada pelo atual presidente. Para tanto, defendeu a entrega das terras indígenas ao agronegócio, mineradoras estrangeiras e as grandes corporações.

            Tal defesa ignora a diferença da relação entre o indígena e a terra. Não é uma relação comercial de plantio e colheita para venda e lucro. O que há é uma relação de pertencimento étnico, uma relação de vida, de existência enquanto povo.

            Além disso, em suas declarações Bolsonaro afirma a existência de uma “indústria de demarcação” no País, que beneficiaria os indígenas a detrimento da economia do Brasil. O falacioso argumento é desmascarado em simples análise dos números: até hoje o País não atingiu a meta constitucional de demarcar as terras indígenas em cinco anos. Há mais de 800 processos de demarcação de terra pendentes na administração da Funai, sem qualquer provimento. E desde 2016 o Estado não reconheceu e demarcou nenhuma terra indígena. Nota-se que a ausência de demarcação ocorreu também na época em que Michel Temer se sentava na cadeira da presidência do Brasil.

            Há, ainda, a hipócrita afirmação do presidente da república de que a demarcação de terra e as políticas públicas de proteção à cultura e as tradições dos povos originários seria uma forma do Estado tutelá-los e deixá-los dependente. É claro que o faz ignorando completamente que a imposição de uma suposta evolução nos moldes ocidentais, como quer fazer Bolsonaro, viola completamente a autodeterminação desses povos e seu direito inerente de escolha e aplicação dos seus próprios costumes.

            A liberdade que Bolsonaro defende é, na realidade, a liberdade dos grandes empreendimentos e donos da terra. Sem entender que os indígenas não são donos da terra, mas pertencem a ela, o presidente trava uma batalha ideológica para exterminar a diversidade cultural e a tradição dos povos indígenas e entregar a seus territórios e toda a sua riqueza natural e cultural nas mãos da indústria do agronegócio e mineração.

            É esse o crescimento econômico defendido pelo agronegócio e pelos grandes empreendimentos: devastar a natureza, plantar soja e matar qualquer indígena ou quilombola que tente manter-se no seu território de direito. O homicídio do líder Emyra Waiãpi e o crescimento de 278% do desmatamento na Amazônia são prova disso.

A resistência organizada

            O movimento social organizado, em especial o indígena, busca fomentar e fortalecer, a ideia de unificação de pauta da terra com todo com os movimentos sociais organizados. Ter a terra demarcada é primordial, mas é necessário também que seja reconhecido o direito de que os povos indígenas ocupem os espaços de decisão das políticas públicas aplicadas para si e sejam reconhecidos enquanto sujeitos políticos constitucionais.

            Ainda se destaca a necessidade de união entre os movimentos sociais que pautam o direito a terra e são contra a devastação da natureza ocasionada pelo agronegócio e a exploração das riquezas naturais de forma desenfreada, sem que haja o necessário equilíbrio no meio ambiente. Como exemplo, a atual união entre povos indígenas e povos quilombolas com a abertura de um diálogo entre esses seguimentos, com o estreitamento da relação entre esses povos para combater as violações de direitos.

            As questões quilombola e indígena são similares em alguns pontos, como por exemplo os processos de negação de direitos, imposição da subalternidade e a violência. A união significa combater o genocídio praticado pelo Estado opressor, de maneira autoritária pela classe dominante, os detentores de poder com o apoio estatal tentam calar as minorias na busca dos direitos. Nesse sentido a união dos povos é a forma mais eficaz para assegurar o cumprimento da lei, e assegurar a vida dos que lutam por tais direitos.

Acima do medo, a coragem.

* Advogado, militante social indígena, assessor jurídico da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (APOINME), membro da coordenação executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

** Advogada e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD)

Edição: Monyse Ravenna