Nascido no seio de uma família de militantes políticos e sociais, o pernambucano Anacleto Julião é filho de Francisco Julião e Alexina Crespo, que participavam de movimentos de luta populares desde os anos 1940. A família estava sempre envolvida em manifestações que iam desde a defesa do petróleo e da soberania nacional, a causas mais locais, como protestos contra aumento da passagem de ônibus. “O fato dos meus pais estarem engajados, principalmente, na luta pela reforma agrária na lei ou na marra, fez com que tivéssemos uma influência e uma orientação política e ideológica na família”, conta Anacleto.
“Nós vivenciamos a luta no nosso próprio lar”, continua. No quintal da casa onde viviam no Recife, próxima à avenida Caxangá, a mãe e irmãs da família recebiam companheiros militantes e camponeses, que seriam atendidos pelo advogado Francisco Julião. Foi naquele espaço onde Anacleto teve os primeiros contatos com tantas histórias sobre tortura e violência no campo, expulsões de terra sem indenização e sem direitos trabalhistas. “As leis trabalhistas surgiram em função da indústria brasileira que surgia na Era Vargas, mas que não tinham valor no campo, onde dominavam os latifundiários”, que aproveita o momento para realçar a importância das Ligas Camponesas, responsáveis por impulsionar o sindicalismo rural e as lutas por reformas de base no governo João Goulart.
Foi também, naquele mesmo quintal, que Anacleto começou a perceber a atmosfera que se formava anos antes do Golpe Militar de 1964. A atuação política da sua família naquele momento era muito forte. Francisco Julião, dono de uma oratória eloquente, venceu duas eleições para deputado estadual e uma para deputado federal. A polarização se convertia em ameaças anônimas à família. “Minha mãe sempre foi muito cuidadosa e sincera com os filhos e nos reuniu para dizer que teríamos que nos cuidar. Ela sempre confiou muito no nosso entendimento”, relembra.
Essa hostilidade pré-Golpe já anunciava os tempos sombrios que estariam por vir, o que fez com que a família tomasse decisões importantes naquele período. As Ligas Camponesas tinham proximidade com Cuba, naquele momento em que a Revolução Cubana influenciava militantes de toda a América Latina. Por essa aproximação, Fidel Castro, então presidente cubano, convidou os filhos de Alexina e Julião a Cuba, para que terminassem seus estudos lá. Anacleto estava com 12 anos quando, junto aos três irmãos mais velhos, saiu do Brasil, pela situação política e pelas ameaças.
Golpe Militar
No dia 1º de abril de 1964, Alexina estava em Havana visitando seus filhos. Foi lá onde ela recebeu a notícia do Golpe Militar no Brasil. Destemida, pensou em voltar imediatamente ao país para participar do movimento de em defesa da democracia. No entanto, foi aconselhada por Fidel Castro a “aguardar e esperar para ver qual seria a reação do povo”. A reação contra o golpe não foi suficiente, ainda que tenha havido muita resistência, principalmente por parte das Ligas Camponesas.
O deputado federal Francisco Julião lançou um manifesto, para que o povo se levantasse em oposição à ditadura que se implantava, mas teve seu mandato cassado e foi preso. Em 1965, Julião foi solto e incentivado a se exilar, partindo para o México. O restante da família permaneceu em Cuba durante um período, sendo esta a primeira experiência de exílio vivida por Anacleto. “Fomos exilados porque, no momento em que os militares tomaram o poder, eles proibiram aqueles brasileiros envolvidos com familiares de esquerda de voltarem ao Brasil”, rememora Anacleto. A família de Anacleto ficou sem documentos brasileiros, impedidos de voltarem ao país e considerados “personae non gratae”, expressão latina para referir-se a pessoas que não são bem-vindas, no Brasil.
Exílios
Durante seu exílio político em Cuba, Anacleto teve participação política, como todo cubano. “Nós não tínhamos privilégios de nenhum tipo, éramos companheiros e participamos da resistência contra o imperialismo norte-americano e o bloqueio econômico”, relembra. Após alguns anos construindo a cidadania cubana, onde chegou a casar e ter seu primeiro filho, aos 15 anos, Anacleto e seus familiares decidiram que queriam voltar ao Brasil “fosse como fosse”.
Juntos a Alexina, migraram ao Chile, na intenção de entrar no território brasileiro atravessando algum país fronteiriço. Naquele momento, Salvador Allende tinha se eleito presidente do Chile, e estabelecia relação próxima com a família Julião. No entanto, a Operação Condor, aliança político-militar entre os vários regimes militares da América do Sul, já estava em andamento e ameaçava a prisão e morte de qualquer exilado político ou pessoa de esquerda que tentasse entrar ao país através das fronteiras.
“Nós formos alertados sobre essa operação e vários companheiros foram, de fato, liquidados fisicamente. Por isso, ficamos no Chile e nos incorporamos aos movimentos e partidos de esquerda”, conta Anacleto. Nesse período, o Chile também sofreu um golpe militar, com a ajuda dos Estados Unidos. Anacleto e sua família foram incorporados à resistência em defesa do governo popular de Salvador Allende, democraticamente eleito.
A derrota da via chinela para o socialismo obrigou Anacleto a partir para o terceiro exílio. Naquele momento, o diplomata Harald Edelstam servia na Embaixada sueca no Chile. “O Cavaleiro Negro” (como era apelidado Harald), livrou centenas de pessoas da morte ao emitir documentos de várias nacionalidades e conceder asilo diplomático a presos políticos da ditadura chilena. Foi assim que parte da família Julião foi para Suécia, para mais um exílio, em 1973.
No país nórdico, Anacleto seguiu na militância. “Sempre a existe a possibilidade de exercer uma atuação militante. Eu considero que a militância se dá em qualquer lugar do mundo. Porém, você tem que se adaptar às circunstâncias e ao momento histórico daquela sociedade e território”, afirma. Na sociedade escandinava, se vivia um movimento de solidariedade internacional e contra a energia nuclear. Foi a partir dessa participação que Anacleto foi se inserindo na cidadania sueca. Foi também naquele país onde Anacleto começou a participar de organizações de direitos infanto-juvenis.
Ainda na Suécia, Anacleto estudou Economia Internacional, Antropologia Social e dois cursos sobre colaboração da Suécia para países em desenvolvimento. “Estudar sempre foi uma obsessão da minha mãe. Ela queria que todos tivéssemos uma formação acadêmica. Porque, a volta para o Brasil não seria fácil”, declara. Ele chegou a ser professor sobre países em desenvolvimento em uma instituição sueca.
Em família
Em 1976, Anacleto resolveu fazer uma viagem ao México para visitar seu pai, que não via há anos. A verdade é que, em uma margem de 15 anos, Anacleto e Francisco Julião só se encontraram três vezes. Os desdobramentos da Ditadura Militar em exílios forçados tinham negado à família o direito de estar unida.
A caminho do México, Anacleto passou maus bocados nos Estados Unidos, onde seu voo fez escala. “O serviço de inteligência norte-americano tinha todas as minhas informações. Fui preso e deportado. Ainda que eu não tenha saído da área internacional, fui detido e expulso do país”, conta. Apesar do susto, a viagem seguiu, mas o rancor dos ianques se mantém: “de qualquer forma, não tenho o menor interesse nem de visitar os Estados Unidos. Pra quê?”.
A ida a terras mexicanas, tinha dois objetivos: visitar o pai e fazer uma pesquisa do curso de antropologia. Anacleto pediu que o pai sentasse em uma cadeira, diante de um microfone e uma câmera Super-8 e respondesse a uma pergunta “O que foram as Ligas Camponesas?”. “Eu tinha que parar a cada cinco minutos porque acabava o filme. Mas, deixei ele falar à vontade” relembra. Foram mais de 40 minutos de monólogo.
Essa experiência foi o grande marco do encontro dos dois. Quando chegou na Suécia, Anacleto foi surpreendido. O filme não tinha som. No vídeo, Julião aparece falando, mas não se escuta nada. “Acho que, um dia, vou ter a possibilidade de trazer uma pessoa que saiba ler lábios, de maneira que eu receba o que ele estava dizendo”, acredita.
Apesar de reconhecer a história do pai, Anacleto defende que sua grande influência foi a mãe. “A influência maior na nossa formação cidadã, política e ideológica foi de Alexina”, conta. Ele lembra da mãe como “militante feminista e referência nacional”. Alexina foi fundadora da associação de mulheres de Pernambuco e da Associação de Mulheres do Brasil. “Foi a pessoa de frente, a comandante, apesar de que nunca gostou de ser mencionada assim, responsável pelo movimento revolucionário Tiradentes em Pernambuco”, fala orgulhoso.
Anistia
“A anistia não foi um presente dado pela Ditadura Militar”, declara Anacleto. Ele atribui a dois fatores a concessão da anistia aos brasileiros no Brasil: a luta popular e a economia. Anacleto relembra que a luta das mulheres pela anistia geral e irrestrita foi fundamental. Esse movimento foi protagonizado por mães, avós, esposas, que tinham parentes vitimados pela Ditadura, muitos exilados. A mobilização ganhou força e aglutinou estudantes e operários.
Havia, também, pressão internacional, movimentos pela anistia no exterior, que contavam com a participação de brasileiros. “Quando anunciaram a anistia, em 28 de agosto de 1979, nós que estávamos no exterior já estávamos acompanhando, esperando, sabendo que ela viria”, conta.
A lei n° 6.683, popularmente conhecida como Lei da Anistia, foi promulgada pelo presidente militar João Batista Figueiredo em 28 de agosto de 1979. Após ampla mobilização social por uma anistia ampla e irrestrita, o processo não se deu livre de contradições. Em seu artigo 1º, a lei concede anistia àqueles que cometeram crimes políticos, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos, servidores públicos, militares e dirigentes e representantes sindicais.
Naquele momento, o governo da Suécia facilitou a volta dos exilados ao Brasil. A ânsia por voltar era grande. Anacleto deixou tudo de lado, vendeu um carro velho e retornou ao Brasil às pressas. Ele descreve o sentimento de retornar ao país: “O exílio político é uma condenação eterna, porque quando você, depois de tantos anos, volta ao seu país, você já não encontra aquele país que você deixou. As ruas são diferentes, você perdeu as raízes da sua infância, da sua adolescência, porque cresceram e você não tem mais isso. Você perdeu o contato com pessoas amigas, familiares, os seres queridos da geração anterior. Quando voltei, meus avós já estavam falecidos. Você volta para um lugar que não é aquele que tinha continuado na sua imaginação. Você volta para um lugar que precisa ser conhecer de novo, criar novos vínculos, novas amizades”.
A chegada ao Brasil também não cessou a luta. Anacleto descreve os anos 1980 como “anos de redemocratização e de muita atividade política, reorganizações dos movimentos sociais, sindicais, partidários e culturais, tudo de uma só vez”. O período era de euforia e idealismo, de fé na redemocratização do país. Anacleto, neste período, já participava do Partido Democrático Trabalhista (PDT), inicialmente fundado em Lisboa (Portugal) como Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), com participação da família de Anacleto e Leonel Brizola.
Nesse período, Anacleto estava com 27 anos e militou na juventude partidária, percorrendo todo o país. Ainda nos anos 1980, ele participou das mobilizações da Constituinte. Durante um período, viveu no Rio de Janeiro a convite de Brizola, onde trabalhou na área da educação ao lado de Darcy Ribeiro.
Memória, Verdade e Justiça
Apesar de importante, a anistia apresentava inúmeras contradições. A necessidade de lutar por memória, verdade e justiça continuou no horizonte daqueles brasileiros que não viram acontecer no Brasil uma Justiça de transição da Ditadura para a Democracia.
Anacleto se envolveu em movimentos que tinham por objetivo investigar os crimes cometidos pelo Estado durante a Ditadura Militar, que seguiam às sombras, como o Comitê Memória, Verdade e Justiça. Por sua afinidade com as lutas camponesas. Ao revisitar as histórias e relatos das Ligas Camponesas, Anacleto fez descobertas interessantes.
“Em alguns núcleos das Ligas Camponesas, o Estado foi, prendeu, matou e torturou. No entanto, a grande maioria dos crimes cometidos no campo sequer foram cometidos pelo exército, porque os capangas dos latifundiários se encarregaram de fazer isso. O dono da terra, o grande proprietário, conheciam as figuras dos municípios, reprimindo e desaparecendo com companheiros”, conta.
Até hoje não se sabe o número exato de assassinatos de camponeses aconteceram no interior de Pernambuco. Anacleto afirma que, através do Comitê da Verdade, foi feito um levantamento de mais de 1000 vítimas, mas provavelmente esse número ainda não corresponde à realidade.
O Comitê da Verdade colaborou com a Comissão da Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco, nomeada Dom Helder Câmara. A Comissão apresentou, em 2017, um relatório de 800 páginas, com violações de Direitos Humanos ocorridas entre 1946 e 1988 por perseguição política. Foram 157 depoimentos colhidos, que apontaram 51 mortos e desaparecidos políticos, vítimas da repressão.
O relatório da Comissão Nacional da Verdade aponta, ainda, que foram 500 mil cidadãos brasileiros investigados pelos órgãos de segurança durante a Ditadura Militar, além de 200 mil detidos por suspeitas de subversão e 10 mil exilados.
Brasil atual
É com muita preocupação que ele observa o cenário político atual. Opositor ao governo Jair Bolsonaro (PSL), ele se diz preocupado com os rumos que o país vem tomando. Anacleto lamenta que, hoje, não se viva uma democracia no Brasil. “Está muito difícil você sonhar com um futuro próximo melhor para todos nós, uma democracia mínima. Com democracia, fica mais fácil avançar num socialismo mais autêntico, mais consciente, humano, solidário”, declara.
Ele relembra Leonel Brizola, que defendia o socialismo como “a radicalização da democracia”. Sobre sua experiência de vida, ele conta que tem a esperança de, um dia, escrever todas essas memórias em um livro, simples, que seja acessível a todos.
Por outro lado, ele reconhece que as Ligas Camponesas deixaram uma herança histórica para o Brasil que não será apagada. São vários os movimentos existentes de luta pela terra no Brasil. Ele afirma que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que é “uma herança formidável e que avançou mais na questão ecológica, na luta contra a agroindústria”, assim como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que tem importante atuação na Igreja Católica.
Baseado em suas experiências na Suécia e Cuba, atualmente, Anacleto atua na organização do movimento Mirim Brasil em defesa de direitos de crianças, adolescentes e jovens. “Eu gosto demais de conversar com a juventude, apesar dos meus 67 anos. Quando eu falo com a juventude, me sinto jovem! Eu queria ter deixado um mundo melhor para a juventude, seria algo extraordinário para nossos filhos e netos”, reflete.
Edição: Monyse Ravenna