O juiz federal Tiago Antunes de Aguiar, da 24ª Vara Federal, em Caruaru, determinou esta semana a reintegração de posse de área de 15 hectares dentro de um assentamento na zona rural de Caruaru (PE). A área em litígio está há 20 anos sob gestão de associação de assentados e sedia um dos mais reconhecidos centros de formação e capacitação de camponeses do estado. Quem pede reintegração de posse é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que não aceita a relação de confiança entre assentados e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A antiga Fazenda Normandia foi ocupada pelos trabalhadores rurais sem terra em 1º de maio de 1993, ao que se seguiu um processo de resistência, com cinco remoções e reocupações ao longo de quatro anos, até 1997. No ano seguinte, houve desapropriação para fins de reforma agrária e indenização ao antigo proprietário. Normandia tornou-se assentamento em 1998.
Além das 41 famílias que vivem no assentamento, uma área comunitária de 15 hectares foi cedida pelos assentados em benefício coletivo: ela deveria servir para capacitação, formação e estímulo à produção daqueles assentados. Na época, o processo foi feito em acordo com o Incra, segundo nota publicada no site do MST. É sobre esta área o pedido de reintegração de posse.
A associação comunitária do Centro de Capacitação Paulo Freire (ACCPF) assumiu então a gestão do terreno, onde foram construídas uma Academia das Cidades e uma quadra poliesportiva em parceria com o Governo de Pernambuco; creche pública, um centro de beneficiamento de alimentos e três agroindústrias que pertencem à cooperativa agropecuária de Normandia, beneficiando a produção de carne de bode; raízes e tubérculos; e a de pães e bolos. As agroindústrias recebem produtos agroecológicos de todas as regiões de Pernambuco e abastecem dezenas de escolas municipais em Caruaru e região, fornecendo alimentos sem veneno também para escolas do Recife.
No local também foi construído o Centro de Formação Paulo Freire, que ao longo de 20 anos tem sido usado para capacitação de assentados da reforma agrária em Normandia e em todo o estado, além de receber as universidades estadual (UPE), federal (UFPE) e federal rural (UFRPE), além do instituto federal (IFPE) de Pernambuco. O Centro Paulo Freire também recebeu a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e órgãos do estado, como o Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA) e espaços educativos do próprio governo do estado para jovens rurais, como o curso "Pé no Chão".
O centro formativo parece ser o grande motivador do ataque encabeçado pelo Incra. O processo menciona o MST, se opondo expressamente ao uso que o movimento faz do espaço cedido com autorização dos assentados: "O MST, sem autorização do Incra, utilizou área comunitária do assentamento para construir as instalações de um centro de formação política", diz o documento assinado pela procuradora federal Maria Maranhão Chaves, da Advocacia Geral da União (AGU). A sentença da 24ª Vara Federal autoriza, caso não haja desocupação espontânea, "uso de força policial", "arrombamento", "condução coercitiva", "remoção dos bens móveis" e "remoção e abate de animais".
Em nota, o MST afirma que "o Centro de Formação Paulo Freire tem parcerias com quase todas as instituições estatais existentes que, direta ou indiretamente, realizam atividades apropriando-se das estruturas do local", diz a nota do MST. "O centro já recebeu congressos internacionais, além de uma dezena de encontros nacionais, passando a ser referência de formação e capacitação, sobretudo, no ramo da agroecologia", completa.
O militante do MST Jaime Amorim viveu o processo desde o início. "Tivemos um longo processo de luta para legalizar as terras junto à associação. Houve questionamentos do Incra, mas sempre nos ajustamos do ponto de vista legal", conta, em conversa com o Brasil de Fato. "Mas agora o Incra quer trabalhar a ideia de que o centro de formação é para formar guerrilheiros", reclama. "Querem impedir que o nosso centro de formação continue", pontua.
Amorim avalia que "é um pedido de reintegração de posse totalmente ideológico, não jurídico", e vê a ação como mais um retrocesso encampado pelo governo gederal. "Hoje é o centro de formação, depois serão os assentamentos. É uma tentativa de retroceder no processo de reforma agrária", completa.
A área reivindicada pelo Incra não engloba as moradias dos assentados, mas a área comunitária gerida pela associação, onde foram construídas agroindústrias para beneficiarem a produção de alimentos dos assentados de Normandia e de outros assentamentos rurais no estado. Se levada a cabo, a desapropriação deve afetar a produção de alimentos e beneficiamento de alimentos sem veneno em todo o estado, atingindo não só centenas de famílias produtoras, mas as merendas de escolas no agreste e região metropolitana do Recife.
O atual superintendente do Incra em Pernambuco é o coronel Marcos Campos de Albuquerque, indicado ao posto pelo deputado federal Luciano Bivar (PSL). Albuquerque coordenou a campanha de Bivar na região agreste em 2018. Quando recebeu a notícia de que seria empossado, o coronel publicou em seu blog que atuaria "visando o bem estar e o bem comum da nossa população, tudo isto sem viés ideológico".
Edição: Marcos Barbosa