Imagina você ligar a televisão e poder ver num só canal produções vindas de diversos lugares do Nordeste. Um documentário produzido no Maranhão; uma série assinada por uma diretora pernambucana; a cobertura de uma festa popular de Teresina; um filme de ficção da Paraíba; uma animação do Rio Grande do Norte; um telejornal em que se pode ouvir vários sotaques na boca de repórteres que aparecem narrando notícias em Alagoas, na Bahia, em Sergipe. Ou mesmo produtos em que profissionais, grupos independentes, produtoras e emissoras de vários estados se juntam para unir forças e criar conteúdos colaborativos?
Tudo isso pode acontecer em breve. Basta que os governadores e a governadora que lançaram o Consórcio Nordeste compreendam a importância estratégica de uma rede que possa fortalecer essas interações e dar voz a narrativas que vão além dos interesses dos governos – mas da diversidade de nossas populações.
É o que deseja o Fórum das Emissoras Públicas do Nordeste, composto inicialmente por representações de veículos de rádio e tevê de oito estados, que já se reuniram três vezes (em Salvador, Recife e Fortaleza) para debater sobre as bases da formação de uma rede que não apenas poderá facilitar a troca de conteúdos. Servirá também para a aquisição de equipamentos, criação de editais conjuntos, ampliação do sinal digital (não basta o canal existir, tem que “pegar”, né?), formação de parcerias interestaduais e internacionais, além do intercâmbio de tecnologias e profissionais.
Cientes do que desejam, as direções de algumas dessas emissoras já começam a dialogar com mais qualidade, exibindo conteúdos umas das outras. A série Olhar, por exemplo, de Camilo Cavalcanti, produzida através do Funcultura pernambucano já tem lugar na TVE da Bahia.
Se o fortalecimento da comunicação pública era uma necessidade antiga para a construção de um país mais democrático, a conjuntura atual tornou-a uma pauta urgente. Desde o golpe de 2016, Michel Temer e, agora, Jair Bolsonaro buscam ferir de morte tudo o que foi construído com muita luta desde o processo de redemocratização do país pós ditadura civil-militar.
As iniciativas públicas de comunicação, simbolizadas pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foram as primeiras a sentirem os efeitos da ruptura democrática: o presidente (com mandato) foi exonerado, o conselho curador foi extinto e as verbas, aos poucos, minguando. A TV Brasil, principal veículo da rede que ainda estava em formação, sofre um processo forte de censura interna e tem-se tornado cada vez mais uma emissora “chapa branca”. Única emissora ligada diretamente ao governo federal no Nordeste, a TV Brasil Maranhão encontra-se na pior crise de sua história. Não há mais programação local e seu quadro de profissionais está sendo cedido a outros órgãos.
A área da cultura não foi diferente. Com o MinC extinto e a Ancine sucateada, a produção audiovisual no país já vem sentindo o baque.
Além do Maranhão, Rio Grande do Norte e Paraíba ainda não têm emissoras públicas de televisão como parte do organograma dos seus governos estaduais, embora ambos tenham TVs universitárias federais e o segundo criou recentemente uma empresa pública de comunicação com uma rádio e interesse de voar mais alto.
Os demais seis estados, juntos, investem pouco mais de R$ 60 milhões por ano em suas empresas públicas de comunicação. O número parece alto, mas não é. Chega a ser inferior ao que alguns destes mesmos governos gastam anualmente com propaganda, financiando os mesmos veículos privados com histórico conservador que concentram suas narrativas no eixo Sul-Sudeste.
Há particularidades, naturalmente. Enquanto Piaui, com 3 milhões de habitantes, investe R$ 6 milhões anuais em sua TV Antares (R$ 2 por habitante), Pernambuco, onde vivem 10 milhões de pessoas, coloca no máximo R$ 4 milhões por ano em sua EPC (R$ 0,4 por habitante) e, nesta década, já chegou a gastar perto de R$ 100 milhões num só ano com propaganda. Em Portugal, por exemplo, o investimento em mídia pública chega a R$ 100 habitante/ano.
Embora cada vez mais as pessoas utilizem-se de ferramentas digitais para obterem informação, a radiodifusão continua sendo o principal meio acessado pela população brasileira. Tanto que, de acordo com o Mídia Dados 2018, a TV aberta continua recebendo mais da metade de todos os investimentos publicitários em mídia no Brasil. Por isso é importante que foquemos nosso olhar na tal “complementaridade entre o sistema público, privado e estatal” anunciado no artigo 223 da Constituição Federal. Se, atualmente, o Nordeste representa uma resistência ao cenário autoritário nacional, este posicionamento precisa refletir-se na forma com que são definidas nossas políticas de comunicação.
Alavancadas por emissoras de TV e rádio atuando em sinergia, portais, redes sociais, vídeo on demand e outros canais via internet, uma rede regional poderá contribuir para o fortalecendo das nossas identidades, para o combate aos preconceitos, para o desenvolvimento da indústria audiovisual e o fomento das relações comerciais entre os estados e fora deles, além de alavancar interações locais em áreas como o turismo, o esporte, a educação e a saúde.
Para isso, é fundamental que haja investimento real e integrado. É preciso que se invista tanto em equipamentos de captação e transmissão quanto em pessoal capacitado e com independência para produzir informação, debate e entretenimento. Mas não estamos falando só de dinheiro. A comunicação pública não pode ser confundida com propaganda de governo. A rede a ser criada precisa ser um instrumento à disposição da sociedade em sua diversidade. Mecanismos de participação e governança precisam estar disponíveis com a transparência necessária a tudo o que é do povo.
Neste mês de outubro, em São Luís (MA), será realizado o 4º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação, realizado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Pense numa ocasião arretada pra se lançar uma rede dessa? Se não for, eu xoxi.
*Ivan Moraes é escritor, jornalista, defensor de direitos humanos e está vereador do Recife pelo PSOL.
Edição: Monyse Ravenna