Manuel Loff é um historiador português, professor da Universidade do Porto e investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Há mais de 20 anos, dedica-se a estudar as ditaduras da Era do Fascismo e os processos de construção social da memória da opressão ou das experiências da sua superação.
Brasil de Fato (BdF): Começando pelo Brasil, em algumas entrevistas você tem caracterizado o governo Bolsonaro de neofascista. Quais as características de um governo com esse caráter?
Manuel Loff (ML): O Governo Bolsonaro, no Brasil, assim como acontece em vários outros locais como na Hungria, Polônia, em alguns países europeus onde a extrema direita tem um peso particular e, mais recentemente, a evolução do que está a acontecer nos Estados Unidos, caracteriza-se por ser um resultado da degradação daquilo de que chamamos de sistema liberal democrático. Em outras palavras, por serem eles próprios produtos e protagonistas de uma transição autoritária. Eu diria que se caracterizam, em primeiro lugar, por uma perda da qualidade democrática, do funcionamento dos sistemas constitucionais, como o brasileiro, o que é muito visível no processo do Impeachment da presidenta Dilma e da forma como foi feita a gestão por parte do presidente Temer, abrindo caminho à eleição de Bolsonaro, ao mesmo tempo em que o principal candidato, o ex-presidente Lula, é preso e detido nas condições em que foi.
Em segundo lugar, é caracterizado, com Temer assumindo o poder, numa mobilização da força do Estado e das bases sociais de apoio ao bolsonarismo, contra os partidos da oposição e, sobretudo, contra os movimentos sociais, individualmente contra ativistas e todos aqueles que possam organizar resistência contra essa nova solução política. Isso é comum ao que aconteceu, justamente, na primeira fase de transição aos regimes autoritários e fascistas na Europa dos anos 20 e 30. Ao contrario do que aconteceu nos anos prototípicos do fascismo europeu, só parcialmente ao contrário, o Estado exerce violência sobre os ativistas, os movimentos sociais, os partidos políticos da oposição. Nós vemos da forma como, ainda no tempo do presidente Temer, se decretou a ocupação militar da cidade do Rio de Janeiro e como uma tradição do exercício de violência contra a sociedade, não falemos evidentemente do caso do assassinato de Marielle Franco... Essa nova solução política não requer que seja especificamente ou assumidamente as forças coercivas do Estado, a polícia, os militares, que contudo estão presentes no governo de uma forma inédita desde 1985 e, de novo, não esqueçamos a magistratura. Mas, também, evidentemente, outras formas de exercício da violência, a coação, a ameaça, através de grupos ou mercenários que operam a uma escala aparentemente inorgânica, mas que podem ter conexão com essa nova solução política. Essa é uma das suspeitas que recai justamente no assassinato de Marielle.
Esta solução tem, também, uma natureza neofascista pelo fato de suscitar em ameaça permanente de suspensão das liberdades constitucionais, da natureza democrática do regime brasileiro do que nós conhecemos como as tiradas públicas, quer de Bolsonaro, ou de seus filhos, de vários dos membros do governo, insinuando que a única forma de implementar, efetivamente reformar, seria superando a forma liberal democrática do regime brasileiro e encontrar uma nova ordem política abertamente autoritária
BdF: Como você observa o crescimento da extrema direita de forma global?
ML: Eu apontaria três ou quatro grandes razões para o avanço da direita neofascista à escala global. O mais clássico, que é a crise financeira e econômica do capitalismo global, quase deliberadamente provocada pelo sistema capitalista de forma a desestabilizar as forças sociais e acentua a degradação daquilo que na Europa havia-se chamado de Estado social. Isso é o conjunto de políticas sociais levadas a cabo pelo Estado no sentido redistribuidor da riqueza, através de várias formas de prestações sociais por desemprego, velhice. A degradação desse Estado social é paralela à degradação da qualidade democrática dos sistemas políticos conhecidos no século XXI e no fim do século XX como o esgotamento político tradicional de alternância entre as forças políticas da direita tradicional de natureza conservadora e liberal e as forças políticas somadas da centro-esquerda, daquilo que pode ser a social democracia europeia, mas aqui em grande medida as forças políticas somadas ao PT no Brasil, no sentido clássico social-democrata. A crise desse modelo da alternância surge porque os dois lados da alternância subscreviam a mesma política econômica. Se acompanharmos esse raciocínio com a verificação do peso das práticas da corrupção em vários sistemas políticos por todo o mundo, a corrupção nunca foi uma exceção, nunca foi característica de um sistema político, está presente em praticamente todos. Se percebermos que uma grande parte da população reagiu, sobretudo, numa espécie de reação moral ao fenômeno da corrupção, uma vez tendo praticamente se habituado à ideia de que as políticas econômicas neoliberais se transformaram praticamente indiscutíveis.
Atenção, foram sempre discutíveis, foram sempre criticáveis, mas é verdade que desde o final dos anos 1970 em que elas foram implementadas por toda a Europa, as Américas e grande parte da Ásia e da África, no fundo, por todo o mundo, uma grande parte da população assumiu essas políticas econômicas neoliberais como indicáveis e reagiram apenas a uma das muitas dimensões que a natureza capitalista do sistema tem, e que é a corrupção. Isso produziu uma situação contra isto de expressão social. Eu vou ao regresso das ideologias da desigualdade, que legitimam o ódio pelo outro que pode ser uma minoria étnica ou racial, que é na maior parte dos casos os migrantes de todo o mundo, como sempre se fez ao longo da história, reconstruir as vidas em outros territórios, o que constitui, eventualmente uma mão de obra extraordinariamente precária, muitas vezes humilhada, mas que, ao reconfigurarem as relações de trabalho em muitos países, foram crescentemente mal recebidos por uma grande parte da população que, insisto, assumiram como uma das reações contra a degradação do estado social uma forma de xenofobia que é de acusar os migrantes, os recém chegados ao mercado de trabalho de deslealdade, ajudar a degradar ainda mais as relações de trabalho.
Nesse sentido, é verdade, a extrema direita tem a sua forma de nacional populismo autoritária de diretamente neofascismo tem avançado também. Quanto mais os setores do sistema político, aqueles que são as organizações políticas dominantes, conservador, liberal e social democrata, se deixaram contaminar pela própria lógica autoritária, reacionária e xenófoba que a extrema direita foi desenvolvendo. Isso é marcante no caso brasileiro, se nós perceberemos na América Latina como a extrema direita usou, reforçada por uma nova lógica de regresso da religião á esfera do politico, das novas igrejas evangélicas neopetencostais e a sua intervenção política, criando um universo, uma lógica identitarista e moralmente extraordinária que ajudou a forçar essa lógica de implantação desta direita no poder ou a sua aproximação.
BdF: Qual seu percurso intelectual para chegar aos estudos de regimes autoritários?
ML: Eu comecei, nos anos 1990, há praticamente 30 anos, a estudar regimes autoritários da natureza fascista na Península Ibérica: o salazarismo, em Portugal, que resulta da Ditadura Militar instalada em 1926 e vai se prolongando até 1974; e o Franquismo na Espanha, que começa com a Guerra Civil de 1968 a 1939, e termina com a transição democrática que se inicia em 1976, um ano depois da morte de Francisco Franco. Por que o meu país e a Espanha tinham se submetido a tão longas ditaduras durante tanto tempo? A partir daí, procurei comparar, com emergências de outras ditaduras da mesma natureza na Europa e nas Américas dos anos 1920, 30 e 40.
Dessa forma, comecei a estudar aquilo que tenho designado como as transições autoritárias. O Brasil conheceu nos anos 1980, como Portugal nos anos 1970, o processo daquilo que se chama de transição democrática. O que nós assistimos nos anos 1920 e 1930, que eu temo que seja o que estamos assistindo na atualidade, são transições autoritárias, passar daquilo que formalmente chamamos democracias para regimes ditatoriais.
BdF: Na história dos regimes autoritários, também coexistem movimentos de resistência com características radicais, você observa isso acontecer hoje?
ML: A resistência a esta deriva autoritária dos regimes de aparência liberal-democrática em que vivemos, por comparação com outros períodos do passado, assume hoje uma forma menos orgânica. As esquerdas europeias, latino-americanas e norte-americanas têm, hoje, uma feição muito diferente daquelas que tinham nos anos mais violentos do fascismo. Por outro lado, não esquecemos que, ao longo das últimas décadas, particularmente na América Latina, uma das formas de resistência contra as derivas autoritárias, e as próprias ditaduras, mais visível era a resistência armada e ela está em regressão, se não em desaparecimento. O fato da luta armada ter praticamente desaparecido não significa que o Estado e a extrema direita tenham deixado de ser violentos. Mas, há outra coisa, que é uma menor disponibilidade social, política e, até mesmo, ética, das classes populares para apoiar soluções dessa natureza, o que faz com que tenhamos que contar, constantemente, com movimentos sociais que também, desde os anos 1980, na Europa e América, ainda que de forma diferenciada, tenham perdido capacidade de mobilização. Refiro-me ao movimento operário, ao movimento sindical, que perdeu capacidade de mobilização. Mas, há, em alguns casos, algumas reações muito significativas. Eu, mesmo não sendo especialista, suponho poder sublinhar o papel da luta pela terra no norte e nordeste do Brasil, e resistência protagonizada por movimento dos sem-terra.
Evidentemente, outra dimensão significativa, que não é exclusiva do Brasil, é a resistência das populações indígenas. Eu acho que uma parte muito significativa da esquerda europeia e latino-americana ainda não assumiu claramente o surgimento de um novo fascismo, com uma nova roupagem, no século XXI. Seria ingênuo, esperar ver em 2019, líderes com aparência, discurso e instrumentos de ação iguais aos de Hitler e Mussolini. É ingenuidade e anacronismo julgar que o fascismo só aparece no século XXI se for parecido àquilo que ele foi nos anos 1920. Uma parte substancial das esquerdas continua a não entender essa mesma emergência, ainda que tenha feitos erros de avaliação muito graves. O que eu acho é que a resistência antifascista precisa ter consciência que é antifascista, que um dos segmentos que pode unir e um dos fatores centrais de mobilização é, fundamentalmente, a luta contra o avanço do neofascismo. Eu creio que essa consciência, essa urgência, ainda não está na consciência das esquerdas.
BdF: Uma das características que percebemos hoje nos regimes de extrema direita é a condenação dos imigrantes que chagam de países pobres ou zonas de conflitos. Como você observa isso atualmente e em outros momentos da história?
ML: Eu creio que as formas de racismo, a fobia à chegada do outro e sua inserção na nossa sociedade, é produto de lógicas de organização da sociedade muito centradas na legitimação da desigualdade. Sim, é verdade que grande parte da aventura humana no século XX foi a aventura da reivindicação da igualdade e da tragédia que a repressão dessa mesma reclamação de igualdade produziu. No final do século XX, com as vitórias do neoliberalismo e do neoconservadorismo, voltaram a marcar a hegemonia das ideologias da desigualdade, a tese de que “o estado natural da sociedade humana é o da desigualdade”. Nós sabemos que a desigualdade tem sido agravada ao longo dos anos. O Brasil foi uma das sociedades que construiu exceção no século XXI, quando os governos dirigidos por presidentes do PT reduziram índices de desigualdade.
Mas, hoje, esses índices voltam a se acentuar. No entanto, no conjunto do planeta, a desigualdade tem avançado nos últimos 40 anos. As pessoas que vivem em sociedades desiguais aprendem a entender que a desigualdade se confunde com a natureza humana. Neste sentido, é como se cada um de nós aprendesse todos os dias a aplicar uma pedagogia da desigualdade, na qual estamos localizados numa hierarquia de camadas desiguais. Ao mesmo tempo, com a chegada de atores imigrantes, nós tendemos empurrá-los para a base da desigualdade. Nós sabemos que migrar de terra é aquilo que, durante toda a história, as comunidades e indivíduos fizeram para procurar reconstruir suas próprias vidas. É um dos atos sociais mais comuns na essência dos seres humanos.
Portanto, quando falamos de migrações, não falamos apenas de estrangeiros que não falam nossa língua, falamos, também, de migrações internas, dentro dos mesmos países. Da mesma forma como um imigrante sírio ou nigeriano arrisca sua vida para atravessar o Mar Mediterrâneo para, depois, ser muito mal recebido, na maioria dos casos, nos países europeus. O mesmo pode acontecer, em outro contexto e escala, com imigrantes nordestinos que, ao longo de décadas, emigrou para São Paulo. Uma parte substancial das sociedades paulista e carioca se construiu na rejeição desses imigrantes. A xenofobia, o receio e o ódio do outro são sempre produtos da sociedade aonde as ideologias da desigualdade ganharam força.
Edição: Marcos Barbosa