Três casos distintos que colocam a atuação do Estado na rota de críticas ao sistema capitalista. Um dos debates do IX Simpósio Internacional de Geografia Agrária (SINGA) juntou denúncias sobre o governo colombiano, reflexões sobre a exploração colonial no Brasil e análises sobre os poderes que envolvem o Estado numa perspectiva histórica e global. As três questões foram apresentadas na mesa "Estado de exceção, crise do capital e processos de autonomia no contexto de ascensão da extrema direita", na manhã da terça-feira (12), na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), campus Recife. Programação que integrou o Simpósio Nacional de Geografia Agrária (Singa)
A mesa foi composta pela historiadora Socorro Abreu e Lima do Departamento de História da UFPE, a ativista colombiana Virgínia (nome político) e o cacique Babau, do Povo Tupinambá. A mediação ficou por conta de Roberto Saraiva, do Serviço Pastoral de Migrantes de Paraíba (SPM-PB). De uma forma geral, o debate indagou os desafios para superar um Estado que pode apresentar faces diferentes faces, a exemplo de “manipulador” - quando alimenta os interesses de uma elite, “traidor” - quando não cumpre acordos firmado, e de “saqueador” - quando explora a povos e bens naturais.
A própria condição de crise ou período de exceção do Estado no modo de vida capitalista foi confrontada. Socorro Abreu e Lima iniciou sua apresentação destacando que o capitalismo sobrevive de contradições: “Que grandes crises do capitalismo foram resolvidas? Foram superadas? O capitalismo é uma crise que, em certos momentos, conta com ajustes, e que, portanto, nos parece mais promissora”. De forma específica, a ativista colombiana Virgínia indagou o sentido de desconfiança diante de um Estado colombiano que firmou, mas não está cumprindo, o acordo de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). A explanação do Cacique Babau partiu da visão Tupinambá diante das disputas entre o povo indígena e um Estado historicamente ameaçador, seja no passado com uma coroa portuguesa ou no presente, com um governo “da burrice” que está no poder.
Estado manipulador
Socorro fez um mergulho histórico sobre a formação do Estado no sistema capitalista, relacionando os poderes e interesses envolvidos nos períodos identificados como exceção. Um dos exemplos utilizados foi a Crise de 1929, em que a contradição de um governo interventor em pleno liberalismo foi a estratégia utilizada pelo Estado para manter o poder do capitalismo. Ainda na primeira metade do início do século XX, a historiadora lembrou também lembrou o caso alemão, com a formação do nazi-fascismo como outro exemplo de intervenção do Estado para manutenção de uma lógica de economia de um país.
Socorro chama a atenção para não cairmos nas artimanhas do capitalismo. A historiadora destacou que há uma relação de siameses entre o capitalismo e o Estado, em que o primeiro “dá as cartas para o segundo”. Em contraposição, há uma armadilha no jogo das narrativas, tentando nos convencer de que capitalismo e Estado estão separados.
Outro alerta apresentado pela representante da UFPE foi com as nossas expectativas de um Estado como mediador das classes sociais. Ao citar o filósofo John Locke, Socorro lembra que a existência da propriedade é anterior ao Estado, e que, portanto, o próprio Estado já agrega a propriedade como um dos elementos-chave de sua existência.
“Existem alguns pressupostos na formação do próprio Estado, que mesmo que ele apareça como responsável pela organização da justiça e das leis, ele não pode interferir em alguns processos que lhe são anteriores, por exemplo, a existência da propriedade privada”, postulou Socorro ao afirmar que muitas ideias sobre a propriedade privada passam despercebidas e são naturalizadas ao longo do tempo na formação dos Estados capitalistas.
Um sentido manipulador do Estado pode ser entendido pela apresentação de Socorro quando temos, ao invés de um mediador social, uma instituição que protagonista em contradições. Socorro apresenta a guerra como alimento para a economia de um Estado capitalista, ou mesmo o estímulo à individualidade como alimento da desmobilização social.
Dentre as pistas para a superação das contradições capitalistas, Socorro provoca inclusive uma revisão sobre o nosso olhar para a cultura legislativa, quando confronta a realidade e a previsão de uma Constituição vigente que destaca a função social da propriedade privada.
Estado traidor
A falta de cumprimentos de acordos do Estado também esteve em pauta na situação colombiana. A ativista Virgínia denunciou que o Estado colombiano não está honrando o pacto firmado com as FARC, em 2016. Ou seja, apesar das repercussões mundiais - que renderam o Prêmio Nobel da Paz ao então presidente colombiano Juan Manuel Santos, a realidade local se configura como “não solucionada”.
Pelo acordo de paz, as FARC continuaram existindo, mas sem manter a luta armada. Porém, em agosto deste ano de 2019, um grupo dissidente das Farc anunciou a volta à luta armada por conta de assassinatos de ex-guerrilheiros, além de ausência de distribuição de terras e de implementação de políticas estruturais em áreas de conflito.
Virginia considera que há um cinismo muito grande por parte do Estado diante das versões contadas sobre mortes e chacinas que estão ocorrendo no país. Por outro lado, a ativista destacou processos de resistência popular na região de Fonseca, através da perspectiva política da comunicação.
“Apesar de estarmos no território de um Estado traidor, há um trabalho mais profundo na comunidade. Trabalhamos com o tema da memória histórica. Porque não vamos permitir que a história seja contada pela imprensa de direita. Não vamos permitir que a história oficial seja a visão ocidental”.
Estado saqueador
O cacique Babau começou sua apresentação destacando que não “não há nada de novo” ao longo do tempo quando se pensa as relações de poderes que envolvem o Estado e as elites. Ressaltando a visão Tupinambá, especificamente, o líder indígena destacou o uso da religião como estratégia dos Estados europeus na colonização da América Latina. A opressão “em nome da fé” resultou numa verdadeira caça aos Povos que não se curvaram à coroa. Ao mesmo tempo, a configuração religiosa foi o cerne da visão desumanizada dos Povos indígenas, como os “sem alma”.
“Foi criada a primeira lei do Estado europeu no Brasil, em que os Tupinambá eram inimigos da coroa portuguesa. Para colonizar precisavam do quê? Aprisionar os donos do país”, ressaltou Babau, ao contextualizar também que, por outro lado, o mesmo Estado europeu encontrou resistência indígena para a exploração trabalhista.
Babau questionou também o imaginário social sobre os Povos indígenas constituído no país ao longo dos séculos, em que não enxergou o genocídio feito Estado, por exemplo. Ao mesmo tempo, a condição de “saqueador” do Estado atravessou séculos e se reconfigurou, a exemplo das propostas do atual governo federal com os territórios dos Povos indígenas.
Edição: Monyse Ravena