A agenda do português Boaventura de Sousa Santos reservou quase uma semana de eventos em terras pernambucanas. O sociólogo sustentou a importância de articulação entre as universidades públicas e os movimentos populares através da prática e da teoria, entre os dias 09 e 14 de dezembro. Boaventura palestrou sobre os temas da democracia e da educação, além de lançar livro, participar de atividades da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) e receber o título de Doutor Honoris Causa concedido pelas universidades Federal de Pernambuco (UFPE) e Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
À risca dos seus postulados, o intelectual apontou algumas contradições que precisam ser superadas para atravessarmos um período histórico de “monstruosidades”. Ao invés das configurações anteriores de governos plenamente coloniais ou ditatoriais, assistimos casos de auto-escravatura e auto-censura no contexto contemporâneo. Boaventura falou sobre uma conjuntura em que capitalismo, colonialismo e patriarcado permanecem bem articulados, juntando velhas e novas estratégias de dominação.
Centro de Formação Paulo Freire
A primeira agenda do ciclo foram os dois dias (09 e 10) no Centro de Formação Paulo Freire, no Assentamento Normandia, em Caruaru (PE), no intercâmbio da UPMS sobre a conjuntura política brasileira. Além do compartilhamento de saberes entre diversas bandeiras de luta e a academia presentes, as entidades participantes se comprometeram a construir uma Escola de Formação da UPMS no próprio Centro de Formação Paulo Freire, dentre outros espaços formativos em Pernambuco. Os compromissos firmados estão registrados na Carta de Normandia, do dia 10 de Dezembro de 2019.
Seminário em Caruaru
Ainda em Caruaru, Boaventura analisou a situação da democracia em aula-espetáculo no dia 11, no Centro Acadêmico do Agreste, da UFPE. A atividade em pauta fez parte da programação do “Seminário internacional superar violências, construir alternativas, escrever um novo mundo”. O pontapé da apresentação do sociólogo foi a contextualização de um Estado e uma democracia desfiguradas, abrindo-se novos capítulos nas disputas por políticas sociais e soberanias nacionais.
“É uma monstruosidade o fato de estarmos em plena ‘normalidade democrática’ e, ao mesmo tempo, assistirmos um Estado de exceção que não cumpre a própria legalidade para atingir os objetivos de quem o governa”, questionou Boaventura ao resgatar e comparar a limitada, mas existente, intervenção popular no Estado em décadas anteriores.
Outra inversão apontada foi o conceito de crise, que “não se explica mais” nas nossas vidas, mas é utilizado para “explicar tudo”. É neste cenário social que o próprio conceito de empreendedorismo (ou de uberização) ganhou ares nefastos em que, por um lado, cria-se uma falaciosa sensação de autonomia, e, por outro, vive-se uma realidade de auto-culpabilização da população pelas situações de precarização. Ou seja, o foco é de despolitização sobre as condições e direitos trabalhistas.
O título da aula-espetáculo em Caruaru foi “Reinventar a democracia a partir dos conhecimentos nas lutas sociais”. Como proposta, Boaventura sugeriu revermos nossas teorias e epistemologias que circunscrevem o capitalismo, colonialismo e patriarcado. Para o professor, repetir as mesmas teorias e práticas na luta pela democracia é estar fadado ao “inferno” das dominações que nos encontramos.
“Não escolhemos nossas lutas em cada época. Temos que lutar com os instrumentos que existem, e depois inventar e radicalizar outros instrumentos. Portanto, temos hoje um instrumento que é a própria democracia, mas que precisa ser reinventada”, teorizou o palestrante ao conceituar a importância de “conhecimentos vivos” das classes populares e dos povos de cultura tradicional.
O Seminário em Caruaru também serviu para articulação e formação da Rede CES-Brasil, uma organização que envolve pesquisadores e pesquisadoras entre Portugal e a América Latina, na perspectiva do pensamento crítico do Sul Global e a construção de uma perspectiva teórico-epistemológica de diálogo com os movimentos sociais.
Aula-espetáculo na UFPE
Em terras recifenses, Boaventura de Souza Santos pregou a descolonização das universidades públicas na manhã do dia 13 de dezembro, no Centro de Ciências Sociais Aplicadas (CCSA) da UFPE. Na aula pública “As epistemologias do sul e a defesa da universidade pública”, o pesquisador começou destacando casos pelo mundo em que governos de direita, historicamente, ameaçam o ensino superior. O conceito de capitalismo universitário foi revisitado com suas diversas fases em que, por exemplo, universidades privadas se apropriaram de recursos das universidades públicas; foram propostas mensalidades nas universidades públicas; e alguns países impuseram uma administração das universidades públicas como empresas privadas.
No caso do Brasil, alguns dos temas exemplificados no contexto atual foram o projeto Escola Sem Partido e as tentativas de criminalização pelo argumento de “corrupção” nas universidades públicas. Boaventura também criticou a dependência das universidades públicas aos métodos de avaliação do ensino pelos rankings, por induzir processos quantitativos ao invés de qualitativos, além de favorecer uma corrida mercantil do ensino público.
Puxando para a conjuntura contemporânea, o sociólogo também sugeriu que as universidades se adequem diante do bombardeio de informações que está mudando o mundo. Os interesses políticos e econômicos de quem, por exemplo, produz fakes news indica mudanças radicais para o presente e o futuro das universidades. Boaventura considera que o colonialismo pode ser dividido em três fases: 1) extração dos recursos naturais; 2) extração das pessoas (trabalho escravo); 3) extração de dados, em que, atualmente, conglomerados empresariais acessam e processam as informações que disponibilizamos pela internet, criando novos caminhos de exploração.
“Qual a ameaça disso? Substituir a ideia de que informação é o verdadeiro conhecimento. Portanto, toda a inteligência artificial assenta a ideia de que o que prevalece é a informação. Nós não somos uma sociedade de conhecimento, somos uma sociedade de informação. Oferecemos informações que são processadas pelos algoritmos e depois elas voltam como atuação de mercado”, explicou Boaventura ao reconhecer a importância da informação, mas, ao mesmo tempo, suas limitações quando comparada ao conhecimento.
Para Boaventura de Souza Santos, as universidades públicas precisam agir por novos caminhos epistemológicos e pedagógicos, em que não se reproduzam apenas as versões dos "vencedores", mas também as versões e saberes dos que, historicamente, resistiram ao capitalismo, colonialismo e patriarcado e podem ser chamados como "vencidos".
“Temos que olhar toda a riqueza de conhecimentos das classes populares para sabermos construir uma sociedade mais democrática. Sem o apoio das elites, quem vai defender as universidades públicas no futuro? São as classes médias e populares. Mas muitas vezes há preconceitos com os conhecimentos das classes populares”, enfatizou o português.
A provocação de novos olhares para as universidades públicas contou ainda com uma críticas às hierarquizações de saberes nos ambientes acadêmicos, secularizando a verticalização do conhecimento. Ao mesmo tempo, Boaventura provocou a ideia de uma “extensão ao inverso”, em que, ao invés da universidade se expandir, a universidade também possa ser expandida pelas comunidades.
Título Honoris Causa
Também no dia 13, o turno da tarde foi reservado para a solenidade de concessão do título de Doutor Honoris Causa pela UFRPE e UFPE. A cerimônia foi realizada na Faculdade de Direito do Recife. Boaventura deu continuidade aos discursos sobre a conjuntura brasileira, destacando a crise no sistema judiciário brasileiro e suas relações com a Operação Lava Jato.
Armazém do Campo
Concluindo a passagem pelas terras pernambucanas, a manhã do sábado (14) foi para lançamento da obra mais recente “Esquerdas do mundo, uni-vos!”. O evento foi realizado no Armazém do Campo, unidade do Recife, e contou com debate com a Mandata JUNTAS CODEPUTADAS (PSOL), Senador Humberto Costa (PT) e Gleisa Campigotto (MST). A necessidade de uma unidade entre as esquerdas no ambiente neoliberal e ultraconservador do atual governo federal foi a pauta principal.
Realização e solidariedade
A passagem de Boaventura de Sousa Santos pelo estado contou com apoio da UFRPE, UFAPE, da UFPE/CAA, do CES/Universidade de Coimbra e do MST, o grupo de pesquisa “Curupiras Colonialidades e Outras Epistemologias” e o “Observatório dos Movimentos Sociais na América Latina”. Vale ressaltar as manifestações contra a presidência da Fundação Joaquim Nabuco - inclusive solidarizadas por Boaventura de Souza Santos - por vetar os recursos financeiros para realização das atividades, além de desautorizar a participação de pesquisadores e pesquisadoras e a utilização de veículos para transportar estudantes de mestrado.
*Com informações do grupo de estudos “Curupiras Colonialidades e Outras Epistemologias”
Edição: Vanessa Gonzaga