Pernambuco

OCUPE

“Tudo o que temos é fruto do trabalho e da luta do povo que mora aqui”

Edicléa Santos, liderança do bairro de Passarinho, conta um pouco da história da comunidade na zona norte do Recife

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Espaço Mulher atua há 20 anos organizando as mulheres do bairro para lutar por direitos
Espaço Mulher atua há 20 anos organizando as mulheres do bairro para lutar por direitos - Vinícius Sobreira/Brasil de Fato

“Tudo o que temos é fruto do trabalho e da luta do povo que mora aqui”
Edicléa Santos, liderança do bairro de Passarinho, conta um pouco da história da comunidade na zona norte do Recife
No último dia 7 de dezembro o bairro de Passarinho, na zona norte do Recife, realizou a 4ª edição do Ocupe Passarinho. Durante o dia foram oferecidos serviços de maquiagem, corte de cabelo, design de sobrancelhas, contação de histórias e oficinas de turbante. Tudo gratuito. Também houve apresentações culturais, feira de artesanato e bingo com utensílios domésticos e quilos de alimentos. Mas para além do encontro, o bairro carrega desde sua origem a luta das pessoas por melhores condições de vida.
A poucos metros de onde aconteceu o Ocupe Passarinho fica a casa do Grupo Espaço Mulher, que além de ser uma das organizações que constrói a atividade, atua há 20 anos dialogando e organizando as mulheres do bairro para lutar por direitos. A atual coordenadora do Espaço Mulher, Edicléa Santos - ou simplesmente Cléa - recebeu o Brasil de Fato para uma conversa.
Ela conta que tudo no bairro foi conquistado pela luta da população. A própria existência do bairro é fruto das reivindicações populares. Nos anos 1980 centenas de famílias que viviam em situação precária no Morro da Conceição se organizaram no bairro, realizaram caminhadas e pressionaram o então governador Miguel Arraes para que tivessem atendido seu direito a moradia digna. "A maioria das pessoas vivia de aluguel, estavam desempregadas, tinham filhos. E morávamos em beira de barreira, com medo da chuva", recorda Edicléa. O movimento tomou força e famílias dos altos José Bonifácio e Santa Terezinha, que viviam em condições similares, se somaram às reivindicações.
Arraes ofereceu um terreno da última área rural do Recife, uma mata fechada às margens da BR-101 onde décadas atrás se plantava Café, localizada após o bairro da Guabiraba, mas antes do município de Paulista. No meio da mata passava uma estrada onde muita gente ia capturar pássaros para vender e, por isso, ficou conhecida como Estrada do Passarinho. O rio próximo, braço do Beberibe, se tornou o rio do Passarinho. E naturalmente o bairro ganhou o mesmo nome. As ruas até hoje têm nomes como Beija-Flor, Canário, Concriz, Galo de Campina, Jandaia, Xexéu e outros.
O governo do estado entregou lotes apenas terraplanados, com encanamento para abastecimento de água e esgotamento sanitário. Energia elétrica só através de gambiarra. "Mas era melhor vir para cá para construir uma casa do que ficar lá, porque o que construímos aqui é nosso", afirma Cléa, que se mudou de vez para o bairro em 1997. Foram sorteadas 800 famílias dos dois altos e do Morro para morarem no Passarinho. Os títulos de propriedade, no entanto, só começaram a ser entregues em 2016 - e não foram todos. Em 2018, também ano eleitoral, foram entregues outros tantos títulos, algo que a maioria da população ainda não possui. "Ainda falta muita gente que mora aqui há mais de 20 anos e não tem o título", conta Edicléa.
A liderança conta que a localidade não era atendida por qualquer linha de ônibus. A população precisava caminhar pelo menos 10 minutos até a BR-101 ou Alto da Bondade para pegar um ônibus. Mas um vizinho e amigo fazia transporte alternativo com kombi em Nova Descoberta e, diariamente, quando saía para o trabalho, levava as mulheres do bairro. "A gente ia conversando sobre possíveis melhorias para o bairro", recorda Cléa. Após quase dois anos de carona, as mulheres criaram em 1999 o grupo As Kombeiras, que em 2003 se tornaria o Grupo Espaço Mulher.
"Tudo o que temos aqui foi através da luta: a única escola que temos, o único posto de saúde que temos e o transporte também foi pela reivindicação", garante a liderança. A água encanada só passou a ser diária, conta Edicléa, quando a própria população fez um poço. Em todas as construções o grupo de mulheres teve participação.
“Eu já tinha a experiência de movimento de mulheres do Morro da Conceição, já conhecia organizações, já integrava um grupo feminista”, lembra ela, que guarda carinho as lembranças d'As Loucas da Pedra Lilás e segue próxima à SOS Corpo e ao Fórum de Mulheres de Pernambuco. O Sindicato das Domésticas também é aliado de longa data do grupo.
O Espaço Mulher começou realizado atividades para mulheres em datas como o 8 de Março, o 20 e 0 25 de novembro. Mas foi a partir de um projeto em 2008, envolvendo 400 crianças do bairro em parceria com a ActionAid e Casa da Mulher do Nordeste, que o espaço no Passarinho passou a ser conhecido por quase todas as mães da localidade. Hoje o bairro abriga cerca 10 mil pessoas, às quais se somam mais alguns milhares que vivem na ocupação Vila Esperança, as cerca de mil da ocupação Bom Jesus e mais mil dos 300 apartamentos do habitacional Miguel Arraes.
Sempre buscando trabalhar a autoestima e autoconfiança das mulheres, além do reconhecimento enquanto mulheres negras, o grupo organiza "dias de embelezamento", com manicure, turbante, trancinhas, maquiagem, "porque além de cuidar de todo mundo, temos que cuidar de nós", diz Cléa. Mas os temas mais frequentes são saúde, violência e renda para essas mulheres. Elas também têm o bloco carnavalesco "Sou gorda mas eu pulo", que sai há 11 anos sempre no domingo pós-Carnaval.
O Ocupe Passarinho representa bem a luta das mulheres do bairro, pautando junto ao poder público melhorias na qualidade de vida da comunidade, ao mesmo tempo que constrói o feminismo e a afirmação da negritude no dia a dia, na vizinhança, nas reuniões semanais em que fazem artesanato para obterem renda enquanto conversam sobre política, violência, direitos sexuais e reprodutivos. "Alcançamos mulheres dos 18 aos 65 anos, então qualquer temática a gente conversa", diz Cléa.
Este ano a carta política do Ocupe traz uma série de reivindicações, mas a pauta prioritária é uma nova escola de ensino fundamental, já que muitas crianças ficaram sem vagas após o fechamento de turmas, além das centenas de crianças sem creche. “Conseguimos que a Secretaria de Educação alugasse uma casa nas proximidades da escola. Já deram uma arrumada na casa desde o fim de 2018, mas este ano todo não colocaram nenhuma criança lá”, denuncia a moradora.
Edicléa Santos parece ter sempre encarado de cabeça erguida os desafios e responsabilidades de construir o bairro (em alguns momentos, literalmente) ou da construção de consciência coletiva, particularmente das mulheres. “Não foi fácil. Quando fundamos o grupo, nenhuma tinha ouvido falar de feminismo. Nenhuma viajava sozinha, sem filho ou marido. Na caminhada começamos a sair de casa, viajar para Brasília (DF) fazer luta, participar de encontros nacionais. E fomos descobrindo nas bocas de outras mulheres as nossas histórias e nos tornando feministas”, diz.
Se no início os maridos colocavam dificuldades para as esposas participarem, hoje eles visitam o espaço, fazem consertos estruturais quando precisa, participam dos mutirões de limpeza e são referidos por Cléa como “parceiros”. “Alguns até dizem ‘a senhora só fala das mulheres’. E eu respondo: vocês se reúnam, formem um grupo de homens. Enquanto a gente se reunia na kombi para falar de política pública para trazer melhorias, vocês se reuniam para falar de cachaça, de dominó e de futebol”, afirma, entre risos.
O orgulho que demonstra ao contar a história de luta coletiva do bairro e daquelas mulheres não se abate mesmo quando se mostra preocupada com o cenário político atual. “Não está fácil. Estamos perdendo vários direitos. Mas a gente não pode parar, não pode abaixar a cabeça e esmorecer. E principalmente temos que estar sempre unidas e unidos, porque se ficarmos sozinhas eles nos derrubam. E não podemos deixar isso acontecer”.

Edição: Marcos Barbosa