Herança dos povos negros e indígenas, a brincadeira tem versão que ocorre apenas em partes da Zona Rural da Mata Norte de Pernambuco e Paraíba. Os brincantes, geralmente trabalhadores do cultivo de cana, ou parentes destes, fazem apresentações que tratam de temas com crítica social, historicidade, política e espiritualidade, por meio de personagens reais e imaginários, dança, música, loas e toadas repletas de significados.
Para o brincante, artesão e figureiro Fabio Soares, do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, do município de Condado, a brincadeira não pode ser pensada sem levar em conta o processo de colonização “O grande emaranhado de tudo é sempre a apropriação”. Afirma ainda que quando se analisa a brincadeira para além da arte, da cultura e da alegria do povo reunido “é possível enxergar as relações de opressão e discriminação que aquele povo vive”. Quando criança, Fábio foi impedido de participar das brincadeiras de Cavalo Marinho, por causa do preconceito que girava em torno dessa prática, “meu pai sempre dizia que quem brincava cavalo marinho ou maracatu ia para o corte da cana ou trabalhar na enxada, e ele queria que o filho dele estudasse e tivesse outro emprego. O povo dizia que era coisa de catimbozeiro, coisa que não presta, mas eu gostava daquilo. Sempre busquei entender e não só participar”, disse.
Helena Tenderini, educadora popular e parteira, realizou durante o mestrado uma pesquisa sobre o Cavalo Marinho, intitulada “Na pisada do galope: Cavalo Marinho na fronteira entre brincadeira e realidade”, abordando as relações de desigualdade tratadas na brincadeira, como questões raciais, econômicas e agrárias. “Analisando como essas pessoas que estão interpretando a história a vivem de fato, eu pude constatar que realmente é uma brincadeira que fala da realidade, principalmente daquela região em que os donos de terras continuam sendo os mesmos, são os descendentes dos senhores de engenho, dos fazendeiros, dos grandes latifundiários dessa estrutura da cana de açúcar.” afirma. Para ela, o processo de colonialidade na região permanece, apenas mudando a roupagem.
“Mesmo perdendo a língua, não se perdeu a linguagem”, afirma Helena, sobre as formas de expressão presentes no Cavalo Marinho que foram herdadas dos povos escravizados e indígenas daquela região. “Um estrangeiro que fala muito bem português chegando na brincadeira, vai entender muito pouco, porque muito da linguagem que se fala no Cavalo Marinho é a dos caboclos e indígenas daquela região; dos negros que foram levados pra lá a força. Tem uma expressão que não foi trazida pelos portugueses”.
Fábio trata também da complexidade presente na brincadeira, tendo em vista a sua evolução, interferência externa, falta de investimentos públicos, ancestralidade e os temas abordados. “Algumas pessoas tratam como lúdico, dizendo ‘eles riem da própria cipoada que eles levam’ mas não é isso, é muito mais complexo ao mesmo tempo pode se tornar simples. O Cavalo Marinho promove uma transformação. A brincadeira é muito maior do que aquela roda, não dá pra falar nisso sem falar de minha mãe e minha vó, dos meus antepassados”, disse.
Edição: Monyse Ravenna