Março de 2018. Em uma sexta-feira, Dália Celeste, mulher transexual, negra foi espancada por dois homens quando se preparava para voltar para casa, depois de participar de evento um cultural de acolhida e boas-vindas à comunidade LGBT da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Em suas redes sociais Dália contou que não sabe como, mas conseguiu escapar e que precisava “antes de relatar minha história, eu quero mostrar para vocês o rosto que não é meu, quero mostrar o rosto que é da misoginia, o rosto da transfobia. O rosto de milhares de mulheres”, escreveu.
Dália foi vítima de um cenário de violência que acomete a maioria da população transexual brasileira. O Brasil é o país que mais mata pessoas transexuais no mundo, conforme publicado no último relatório da Trangender Europe (TGEU). Afora os números de mortes, que muitos não são notificados como crime transfóbico, existem diversos outros tipos de violências que marcam a vida dessas pessoas.
Em números absolutos, o Rio de Janeiro foi o que mais matou a população trans em 2018, com 16 assassinatos. Em segundo a Bahia, com 15 casos, terceiro São Paulo com 14 casos, em quarto lugar o Ceará, com 13 assassinatos e ocupando a quinta posição, o Pará com 10. Pernambuco, no mesmo ano, contabilizou sete assassinatos, como mostram os dados do Dossiê dos Assassinatos e da violência contra Travestis e Transexuais no Brasil em 2018, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA) e Instituto Brasileiro Trans De Educação (IBTE).
Para Regina Guimarães, militante pelos direitos humanos e presidenta do Instituto Transviver, esses números não retratam verdadeiramente a realidade principalmente pela postura dos órgãos de segurança. “Eu sempre digo que não conseguimos ter o panorama real de violência, porque a própria polícia quando vai fazer as ocorrências, terminam não identificando uma mulher trans, porque eles colocam o nome de registro, que muitas vezes ainda está associado ao sexo biológico, o que faz com que muitas violências são atribuídas as pessoas erradas. Eu sempre pego essas pesquisas e multiplico por 5 ou 6”, defende.
Para Fabiana Oliveira, estudante de psicologia e integrante da Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais de Pernambuco (Amotrans-PE), a violência é estrutural na sociedade. ”A violência está em todos os espaços. Vivemos em uma sociedade que se constrói a partir de genitálias. O ser humano antes de nascer, as pessoas já dizem o que eles são a partir de uma genitália, ou seja, você é homem ou mulher a partir disso. E as pessoas trans já são violentadas a partir deste nascimento”, diz. Logo depois do nascimento, ainda na análise feita por Fabiana, as crianças continuam passando por processos violentos. “Às vezes escuto as pessoas dizerem que não existe crianças trans e eu sempre respondo que senão existe criança trans, também não existe criança cis. Carl Rogers (teórico) fala que a criança é muito autêntica e ela se expressa de uma forma verdadeira, tudo que ela sente também. Quando ela apresenta alguma expressão de gênero e não quer brincar de carrinho e de sim de boneca ou vice e versa e isso é repreendido ela vai crescer com uma falsa impressão de si. Daí já começa outro processo de violência”.
Regina Guimarães constata que a violência cometida pelo núcleo familiar é uma das mais comuns e que desencadeia muitas outras na sociedade. “Os números de violência podiam diminuir em 70% se essa população tivesse o acolhimento do seu primeiro núcleo social. A família é corresponsável por todas as violências que a população trans passa fora de casa e é responsável em primeiro lugar pelos milhares tipo de violências que são cometidas dentro de casa. A partir do momento em que essa garotada abre o coração começam as violências não só verbais, psicológicas e físicas, mas coisas ainda mais absurdas de ódio, com requintes de crueldade, como é a expulsão de casa e o estupro corretivo”, diz.
Ainda segundo o Dossiê da ANTRA, a vítima mais jovem noticiada em 2018 tinha 17 anos e a mais velha 49 anos. O Mapa dos assassinatos aponta que 60,5% das vítimas tinham entre 17 e 29 anos. E foi durante essa janela de idade que a modelo e ex Miss Transex Pernambuco, Bruna Lima, passou por cinco anos de assédios e violências dentro da universidade. Na época Bruna ingressou na universidade pela ampla disputa e foi aprovada para o curso de Educação Física. “Foi em 2007, quando eu entrei na federal de Pernambuco, sendo a única mulher trans da época, sofri assédios constantes inclusive dos professores com intimidações, que me fizeram desistir de continuar meu curso, que era meu sonho. É muito difícil ver seu sonho se transformar em um pesadelo nas mãos de outras pessoas. Para mim foi uma violência institucional sem tamanho. Vivi dias difíceis e solitários, porque termina que as pessoas também se afastam de você para não viverem as mesmas coisas que você”, conta. A aluna na época não chegou a abrir nenhum processo administrativo, por medo, após ter sofrido diversas ameaças.
Para a jovem, que conseguiu concluir o curso em uma faculdade particular, as condições de acolhimento das instituições deveriam ser direitos garantidos. “É necessário políticas de acesso, mas também de fortalecimento e de afirmações para a população transexual dentro das universidades. É preciso que a academia esteja mais atenta a esse tipo de violência, porque pessoas morrem também por isso”, conta.
Quem protege
Em junho de 2019, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito" em razão da orientação sexual da pessoa poderá enquadrados no crime de racismo. Essa determinação se a plica aos atos contra homossexuais e transexuais. Mas, segundo Thiago Rocha, coordenador de projetos do Instituto Papai e presidente do Fórum Estadual LGBT, “Nós contamos com a resolução do STF, mas ainda não temos leis concretas. Hoje fica ainda a cargo da interpretação do magistrado de cada caso, o que dificulta demais a consolidação da resolução”.
Os termos da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) resguardam quem exerce o papel social de mulher, seja biológica, transgênero, transexual ou homem homossexual. E o sujeito que pratica a violência doméstica contra elas também pode ser do sexo feminino, já fixou o Superior Tribunal de Justiça, desde que fique caracterizado o vínculo de relação doméstica, familiar ou de afetividade. Hoje, apenas seis estados aplicam a Lei Maria da Penha para Travestis e Transexuais no país e Pernambuco é um deles.
Ainda na avaliação de Thiago Rocha, as leis são importantes, mas não deveriam ser só elas. “É muito triste a gente precisar ter que se utilizar de leis para punir as pessoas de atos que elas não deveriam fazer não porque “vai ser preso”, mas porque não é legal para ninguém. Mas, ainda assim, esses dispositivos são importantes porque são as únicas formas que a gente tem de recorrer a alguma defesa, mesmo que ainda de forma muito fragilizada”.
Transgêneros
São todas as pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao seu sexo biológico. De maneira geral, essas pessoas sentem um grande desconforto com seu corpo por não se identificar com seu sexo biológico. Por isso, têm a necessidade de adotar roupas características do gênero com o qual se identificam, se submetem a terapia com hormônios e realizam procedimentos para a modificação corporal, tais como: a colocação de implantes mamários, a cirurgia plástica facial, a retirada das mamas, a retirada do pomo de Adão. Algumas vezes, desejam realizar a cirurgia de redesignação sexual (cirurgia genital).
Edição: Monyse Ravena