Neste mês de fevereiro o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) celebra 30 anos de sua atuação no estado de Pernambuco, iniciada nos anos 1990.
Para entender o presente é preciso olhar para o passado. Quem nos ajuda com a tarefa é Rubneuza Leandro, da direção do MST e integrante do Setor de Educação do movimento.
“A história do Brasil é marcada por conflitos agrários. Desde a chegada dos portugueses, com a resistência indígena pelo território; a resistência negra à escravidão e busca da liberdade, com confrontos, fugas e formação de quilombos, uma forma de reconstrução de seus territórios”, diz Rubneuza.
Ela lembra que com a Lei de Terras (1850), uma tentativa de organizar a propriedade privada das terras; somada à ausência de políticas de inclusão para a população negra após a abolição da escravatura (1888); a solução encontrada foi a ocupação de terras. Nas décadas seguintes surgiram focos de resistência contra coronéis locais e até contra o Estado brasileiro, a exemplo de Canudos (Bahia), Caldeirão (Ceará) e Contestado (no Sul, entre Paraná e Santa Catarina). A partir da década de 1940 surgem movimentos grandes que compreendem a necessidade de lutar pela reforma agrária no país. Até 1960 crescem as Ligas Camponesas (no Nordeste), a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab) e o Movimento dos Agricultores sem terra (Master), organizações que foram destroçadas pelo Golpe Militar de 1964.
Já no fim da década de 1970 cresce a luta pela terra, a princípio amparada por setores da igreja católica, encabeçados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), organização que segue contribuindo até os dias atuais. As históricas ocupações das fazendas Macali e Brilhante (ambas em 1979), seguida pela ocupação da Encruzilhada Natalino (1981), todas no Rio Grande do Sul, são marcos para os camponeses que fundariam o MST. “Os setores que apoiavam essas lutas já cogitavam construir um movimento autônomo, fora da hierarquia da igreja católica”, diz Rubneuza Leandro. A ideia maturou e em 1984 acontece o encontro de fundação do MST, há 36 anos.
A primeira ocupação em Pernambuco se deu em 1989, na região do Porto de Suape. “Havia uma leitura, na época, de que o governador Miguel Arraes (PSB) permitiria que o movimento se expandisse com facilidade e que poderíamos nos consolidar. Mas houve um despejo violento e as famílias ocupantes foram deslocadas para o sertão”, conta a dirigente. Já naquele período o movimento realizava ocupações de terras improdutivas pertencentes a figuras políticas envolvidas em escândalos de corrupção. Naquela ocasião o MST ocupou terras em que, 10 anos antes, ocorrera o “Escândalo da Mandioca”.
O crescimento e amadurecimento da organização leva as elites a aumentarem a repressão contra os camponeses, ao que o MST responde com criatividade. “Unificamos uma data para que todos os estados fizessem ações, algo que gerasse um processo nacional, uma marca, chamando atenção para a nossa luta”, conta Rubneuza. Era a semente do que hoje é a Jornada de Lutas do Abril Vermelho. Numa dessas jornadas acontece a ocupação da antiga Fazenda Normandia, em Caruaru. Era 1993 e durante os anos seguintes a repressão seria grande.
“Foram despejos violentos e sempre reocupamos logo em seguida. Não havia perspectiva de desapropriação. E numa das jornadas fizemos uma greve de fome de 11 dias na sede do Incra”, lembra Rubneuza Leandro. A greve de fome foi no mesmo período houve o massacre de Eldorado dos Carajás (no Pará), quando a polícia militar encurralou e atirou contra dezenas de famílias que caminhavam na rodovia. A ação dos militares tirou a vida de 21 camponeses.
Educação
A preocupação com a educação é algo que acompanha o MST desde seu surgimento. “A luta pela terra é uma luta de toda a família por outro modo de vida, um retorno ao campo. Mas o que fazer com as crianças nas ocupações!?”, provoca Rubneuza. Ela conta que ainda no Sul do país, nas primeiras conquistas de terras, os camponeses perceberam que as escolas em que estudavam os filhos dos acampados e assentados, essa escola fazia uma contrapropaganda da luta por reforma agrária. “Alguns professores diziam que o movimento era ladrão, que roubávamos terras de fazendeiros. Isso começou a preocupar as famílias”, afirma.
Dessa questão surgem os setores de educação, pessoas com a responsabilidade de pensar a educação voltada para esses sujeitos que tem, entre seus objetivos, a luta pela terra, pelo socialismo e pela transformação das pessoas. “Não dava para usar a mesma base de uma educação que ensina para a opressão e dominação. Precisávamos de um projeto educativo de acordo com nosso projeto de sociedade”, conta a educadora.
As duas principais preocupações eram a escolarização das crianças, nos anos iniciais do ensino fundamental, e a educação de jovens e adultos, já que havia um alto percentual de analfabetos. Com o tempo o movimento passa a pensar nos anos finais do fundamental e nível médio e, mais recente, nível superior. “No início tínhamos uma concepção de que camponês não precisava saber ler e escrever, ou que os quatro anos iniciais do fundamental eram suficiente. Mas a luta exige que nos apropriemos do conhecimento como forma de auto-organização e auto-gestão, para as pessoas pensarem comercialização, desenvolvimento local, cooperativismo”, afirma Rubneuza Leandro. Hoje o MST já tem entradas e parcerias com universidades em cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado.
Rubneuza aponta como conquistas da educação do MST em Pernambuco os milhares de jovens e adultos alfabetizados através do Programa Brasil Alfabetizado, o EJA Campo, o Programa Nacional de Educação e Reforma Agrária (Pronera), conquistas que não se restringem aos assentamentos do Movimento, mas que alcançam o povo camponês como um todo, incluindo povos indígenas e quilombolas. O Movimento segue investindo em formação com educadores para se pensar uma nova matriz. “A escola obedece ao estado. Então precisamos assumir a formação do educador.”.
Nas terras conquistadas em Caruaru o movimento construiu o Centro de Formação Paulo Freire (CFPF). “Era um local de formação para os acampados e professores aliados, mas com a ampliação da estrutura do Centro, cresceu também a demanda de outras organizações para realizar atividades no centro. E assim se tornou essa referência de formação humana, técnica e política”, avalia Rubneuza, integrante do Setor de Educação do MST.
Em 2019 o centro foi alvo de pedido de reintegração de posse por parte do Incra. “Estamos vivendo um momento no Brasil em que o pensamento crítico é atacado. O que vivemos no último ano é resultado do papel que o Centro Paulo Freire cumpre para o MST e para a classe trabalhadora do estado. Mas assim como resistimos no período de despejo das terras, estamos resistindo na defesa do centro”, diz a dirigente. A escolha do nome do educador pernambucano não é uma mera homenagem. “Ele ensina que numa sociedade injusta como a nossa, não basta as pessoas se apropriarem dos códigos de leitura da palavra. É necessário que aprendam a ler o mundo”.
Edição: Monyse Ravena