Pernambuco

OPINIÃO

Artigo | Cinco ingenuidades sobre o “Fora Bolsonaro” em tempos de pandemia

Argumentos para justificar a tática de disputar janelas impressionam pela ausência de referência à correlação de forças

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Bolsonaro em pronunciamento da última terça-feira (24) - Reprodução

O momento em que escrevo essas linhas desconhece paralelo na história mundial. Trata-se, sem dúvida, de uma das maiores crises humanitárias da história do capitalismo. Crise da qual só temos, de fato, um retrato aproximado pelo bombardeio de notícias. Estas, pouco nos informam sobre o impacto da pandemia na classe trabalhadora ou nos continentes propositalmente esquecidos pela gente do andar de cima que segue escrevendo a história oficial. Um vírus não escolhe classe, gênero ou cor da pele, mas, no capitalismo, quem mais sofre as consequências e morre aos milhares são os setores populares que têm cor, gênero e só aparecem ocultos nas estatísticas. 

Para o povo brasileiro o cenário é ainda mais distópico. Em meio à pandemia, o governo do país é comandado pela expressão fiel do fascismo encrustado nos aparelhos de Estado e do pensamento escravocrata de nossa classe dominante. Nessas terras, a pandemia veio para expor e acelerar a catástrofe e o genocídio transformados em projeto de Estado. Não à toa, portanto, o chefe de Estado aproveita o momento para intensificar ainda mais o desmonte dos direitos da classe trabalhadora e, ainda mais alarmante, colocar em risco a vida de milhões de brasileiros, contrariando todas as recomendações de contenção do contágio. 

A pandemia expõe também a dificuldade da unidade dos setores progressistas em uma estratégia que os permita disputar corações e mentes para a retomada da democracia e para o desgaste, não apenas do presidente, mas do conjunto dos interesses que o comandam. Nas semanas que antecedem as medidas de quarentena, as principais organizações da esquerda se viam às voltas com o difícil debate em torno da palavra de ordem “Fora Bolsonaro”. Tal insígnia passava a crescer inevitavelmente, não apenas nas manifestações de rua, mas também em parte da própria base que elegera Bolsonaro. Não era de se estranhar que viesse à tona, uma vez que tal grito fora usado também pela esquerda contra o neoliberalismo durante a década de 1990. Teria de ser mais adequado agora diante de um presidente que produziu em um ano de mandato um almanaque de razões que viabilizariam um impeachment. Por que, então, a dificuldade em adotar de vez a palavra de ordem? 

Acontece que o atual governo representa uma ruptura com os parâmetros da luta de classes aos quais estávamos acostumados. O golpe de 2016, ao qual se somou a eleição de um governo neofascista em 2018, rompeu por completo o pacto da nova república, ao instalar um governo com a maior presença de militares de que temos notícia, sustentado pelo setor mais conservador e elitista de nosso judiciário e que, não menos importante, conseguiu angariar e manter uma forte base social cimentada ideologicamente e com fortes canais de influência sobre a classe trabalhadora urbana. Esse conjunto de fatores faz com que a deposição, plenamente justificável da figura de Bolsonaro, não signifique necessariamente o desgaste do projeto que ele representa e, pior, possa significar justamente o contrário.  As pesquisas de opinião atestavam que o crescimento da rejeição ao presidente em sua antiga base de apoio não tinha como determinação aquilo que o presidente vinha fazendo, mas, ao contrário, as medidas autoritárias que havia prometido e não havia feito. 

Diante do cenário complexo, a concertação possível no interior da esquerda era, até algumas semanas atrás, desgastar o governo na crítica às suas medidas, combinando a convocatória dos atos de massa com iniciativas de retomada do trabalho de base junto ao povo. Isso, não obstante a lógica do pragmatismo parlamentar se adiantasse às análises buscando um lugar ao sol no debate acerca do impeachment que já permeava os corredores do congresso, contando com apoio de setores da direita que, habilmente, se deslocaram da base do governo. 

A pandemia serviu de catalisador a todo esse processo. Foi de Janaína Paschoal o primeiro grito pelo impeachment que viralizou nas redes sociais, diante da aparente irracionalidade do presidente frente ao desastre iminente. Os setores médios, particularmente seu estrato mais conservador, impactado pela presença do contágio, retomou as panelas e ecoou o “Fora Bolsonaro” das janelas Brasil afora, durante o pronunciamento do presidente e seus ministros no último dia 17 de março. Já em guerra com o Bolsonaro e com forte militância em prol do impeachment, a Globo repercutiu amplamente as manifestações e o desgaste do presidente, mas nunca de seu projeto, nem de seu governo, muito menos de seu vice que ninguém sabe muito bem por onde anda nos últimos meses. 

O primeiro panelaço ocorria um dia antes do ato marcado pelas duas frentes unitárias da esquerda e das centrais sindicais contra o desmonte da educação e do serviço público, que havia sido corretamente cancelado devido à pandemia. É assim que o dia 18 foi caracterizado pela adesão massiva dos partidos de esquerda, centrais sindicais e das duas frentes unitárias (Frente Brasil Popular e Povo Sem Medo) aos panelaços. Senão pelo discurso, ao menos na prática, isso significava uma adesão, agora sem retorno, à tática de deposição do presidente expressa na palavra de ordem “Fora Bolsonaro”. 

Os argumentos elaborados (às pressas) para justificar a tática de disputar as janelas em meio aos protestos impressionam pela ausência de referência à correlação de forças e ao contexto em que elas se inserem. Vale a pena citarmos ao menos cinco desses argumentos aqui. 

1)    A forma de luta “panelaços”
O primeiro deles se refere à forma de luta adotada. De fato, os panelaços foram utilizados também pela classe trabalhadora no Chile contra a Pinochet, diante da interdição das ruas pela brutal repressão dos militares. Sua origem, contudo, vem da própria burguesia que o utilizou amplamente em 1971 para inflar o golpe militar contra o governo socialista de Salvador Allende. Dessa forma, a esquerda reinventava os panelaços no Chile contra a ditadura, reivindicando o direito de se reunir, de sair às ruas, de se encontrar, de participar da vida do país. 

Todavia, a situação imediata de nossas janelas nada se assemelha à criatividade dos chilenos contra a repressão. Os panelaços dos últimos dias reivindicavam a deposição do presidente diante da crise humanitária gerada por uma pandemia. Em outras palavras, exigiam que o Estado brasileiro tomasse as medidas necessárias de contenção do vírus que implicam, antes de mais nada, o afastamento social, a proibição (pela coerção se necessário) das aglomerações nas ruas, a paralisação do funcionamento presencial de toda instituição que não seja absolutamente necessária à contenção da pandemia (incluso aí parte dos poderes da própria república).  

As formas de luta são o que são, formas cujo conteúdo e significado é dado pela análise concreta de uma situação concreta, pela relação das forças sociais em confronto e dos interesses em jogo a cada momento histórico. Certamente, o problema não é ir à janela batucar panelas contra o neofascismo. O problema é fazê-lo sem levar em consideração as consequências reais de tal ação na correlação de forças em tela, sem saber o que fazer em seguida. 

2)    É necessário disputar a palavra de ordem 
O segundo argumento é bastante sedutor pelo seu pragmatismo. Como o Bolsonaro é a expressão mais evidente do projeto neofascista e como, ademais, os panelaços ocorrerão independentemente da convocatória das organizações de esquerda, o que nos restaria é ir às janelas disputar (aos gritos) a palavra de ordem e tentar reverter (sabe-se lá como) as manifestações em acúmulo na luta pela democracia. 

Ouvi esse argumento de diversos companheiros e companheiras com quem divido lutas e sonhos, a quem entrego a vida e compreendo seus anseios por uma ação imediata nesse momento. Até agora, contudo, ninguém soube me explicar como convencer um protesto, cujo centro gravitacional é a rejeição ao presidente, de que a melhor palavra de ordem não é o “Fora Bolsonaro” ou sua imediata deposição pelos meios disponíveis (que não são muitos). Os relatos de que “da janela lá de casa ouvi vários vizinhos gritando Bolsonaro Fascista” não respondem em nada ao problema. 

3)    A periferia também bateu panela
A visão expressa aqui sobre a expectativa dos protestos pode ainda ser unilateral, ao ignorar uma possível adesão popular ao “Fora Bolsonaro”. O envolvimento dos trabalhadores precarizados, dos setores mais empobrecidos de nosso povo no jogo político atual seria, de fato, um fator inesperado com possibilidades novas aos lutadores do povo. Aqui existem, novamente, relatos e mesmo alguns registros de panelaço nas periferias. 

Moro num bairro operário do Recife e esse não é, infelizmente, o meu relato. Para além dos relatos, contudo, a pesquisa publicada pelo Datafolha no último dia 23, atesta que a rejeição à atuação do presidente diante da pandemia cresce na razão direta da concentração de renda no país: 85% entre eleitores que recebem mais de 5 salários (34% na faixa de renda entre cinco e dez salários e 51% na faixa acima de dez salários ao mês) e 62% entre os que recebem menos de cinco salários (33% na faixa até dois salários e 29% na faixa de dois a cinco salários). 

Difícil é entender como os mesmos setores que, até ontem, reivindicavam abertamente o fechamento do STF, a liberação do porte de armas, o reforço do aparato policial ou a volta dos militares teriam se convertido aos ideais democrático-republicanos em meio a uma crise humanitária que exige, justamente, o reforço do aparato do Estado para medidas que restringem a livre circulação de pessoas, interditam reuniões, fecham comércio, dão ao executivo o direito de publicar medidas sem o trâmite pelos três poderes. 

Em uma palavra, em meio a medidas típicas de um estado de exceção e, pior de tudo, necessárias nesse momento. Desnecessário dizer qual setor fundamental no aparato do Estado cumpriria tais medidas com maior eficácia e agilidade (mas com péssimo resultado para a democracia e para a vida da classe trabalhadora). 

4)     O impeachment de Bolsonaro é uma medida para salvar a vida dos brasileiros
Se o terrível surrealismo destes tempos fosse durar pouco, a pandemia poderia servir somente para desgastar Bolsonaro e seu governo, nos dando algum fôlego para disputar corações e mentes quando pudéssemos sair e abraçar nosso povo onde ele vive e trabalha. A questão é que o consenso da comunidade científica e das projeções feitas até agora indica que a situação apenas começou e tende a piorar. E o presidente se manifesta publicamente como o maior aliado da pandemia no país. 

É diante disso que se coloca o quinto argumento de adesão ao “Fora Bolsonaro”. Ele é, sem dúvida, o mais concreto e inescapável, embora não menos ingênuo. A deposição do presidente ganha a cada dia o caráter de uma medida humanitária e urgente, impossível, por isso mesmo, de ser ignorada pelas forças progressistas e democráticas. A adesão ao “Fora Bolsonaro” abriria, assim, um caminho de disputa dos setores populares, onde o descontentamento é menor, mas que tende a crescer nos próximos dias. A brecha para isso foi colocada pelo próprio Bolsonaro na última segunda-feira com a publicação de uma medida provisória que, além de acelerar o desmonte da CLT, previa a suspensão dos contratos de trabalho, entregando milhões de brasileiros à fome em meio à pandemia. 

Os panelaços na última segunda feira tiveram, pela primeira vez, maior peso da esquerda e dos movimentos populares e sindicais na convocatória pelas redes. Não à toa o próprio presidente voltou atrás da medida e, seguindo conselhos da própria cúpula militar no governo, anunciou em coletiva de imprensa reunião com governadores apoiando as medidas necessárias para a contenção do vírus. A abrangência dos panelaços na segunda foi reduzida em comparação com os dias anteriores, sua projeção pela mídia, menor ainda. 

A forma legal de dar consequência aos panelaços seria, obviamente, o impeachment. Uma suposta ascensão do vice à cadeira de presidente reforçaria, sem dúvida, a presença militar no governo e nas decisões e vale lembrar que o estado de calamidade pública se estenderá até o final do ano. Tal governo, contudo, teria de manter ao menos nas aparências o funcionamento das instituições democráticas. A questão aqui é que o procedimento necessitaria passar por longo debate no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, ambas as instituições parcialmente paralisadas pela presença do vírus entre seus membros. O vírus não respeita o trâmite regular dos processos democráticos. 

5)    Não aderir aos panelaços significa se abster de atuar na conjuntura
A conhecida frase de Gramsci ecoa em nossos tempos como uma maldição de coerência. Nunca foi tão difícil o necessário equilíbrio entre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. Será difícil alimentar a esperança em soluções pautadas no imediatismo, no espontaneísmo ou no tempo pragmático do calendário eleitoral. O acúmulo de forças exigirá da esquerda brasileira um esforço prolongado e difícil que combine a dura reflexão crítica sobre nossa realidade atual à capacidade de dar respostas claras aos desafios da conjuntura de forma unitária com o acúmulo de forças junto à classe trabalhadora. 

O otimismo exige a capacidade de olhar mais longe, de voltar nossas forças para a única tarefa capaz de recuperar nossas energias e esperança: o paciente e prolongado trabalho de organização popular retomando a confiança do povo em si mesmo, o reinserindo como força relevante na disputa política. Trata-se de dialogar e convencer esse mesmo povo que, ameaçado de morte pela pandemia e pelo presidente, preocupa-se em manter o mínimo de comida nas poucas panelas que ainda tem. E é exatamente para esse trabalho que a atual pandemia fornece possibilidades de exemplo pedagógico, de criar simbologia, de conquistar a confiança do povo brasileiro

São inúmeras e necessárias as ações de solidariedade possíveis nesse momento, voltadas para as necessidades reais e urgentes da classe trabalhadora diante da pandemia e das ações genocidas do governo. Tempos difíceis virão e nossa tarefa é preservar nossas forças, preparando-as para a contraofensiva futura. E não há melhor forma de preparo do que nos fazer presentes diante daqueles que só conhecem, do Estado, a violência e o descaso. Certamente isso não impedirá ninguém de gritar Fora Bolsonaro, mas se não conseguimos, por hora, nadar contra a corrente, não nos adianta remar na mesma direção.

Termino com os acontecimentos da noite de ontem (24), que impulsionaram essas linhas. Anulando completamente a concessão do dia anterior, o genocida se dirige ao povo brasileiro repetindo  todas as barbáries em relação à crise, desautorizando os governos estaduais no cumprimento necessário e urgente das medidas de contenção da pandemia e, seguindo as recomendações de Washington, declarando que a saúde das bolsas de valores se sobrepõe à vida de milhões de brasileiros. 

Sim, a deposição do presidente se insere como uma questão humanitária inescapável. Contudo, a solução colocada na ordem do dia está longe de acumular para a retomada da democracia, muito menos para um projeto de esquerda no país. Coincidentemente, logo após a declaração do presidente, o comandante do exército brasileiro, General Leal Pujol, julgou ser o melhor momento para se dirigir a toda a nação a respeito da crise. O militar anunciou, sem muitos detalhes, medidas de atuação emergenciais das forças armadas que estariam sendo preparadas pelo ministério da defesa, terminando seu discurso com o sonoro grito de ordem: “o braço forte atuará se for necessário, e a mão amiga estará mais estendida do que nunca”. O discurso foi transmitido pelo canal oficial do Exército Brasileiro no Youtube. Fosse em cadeia nacional de TV, contaria com sonoros aplausos nas janelas da Barra da Tijuca.

Eduardo Mara é cientista social, doutor em serviço social e professor do Centro Universitário Joaquim Nabuco , no Recife, e também integrante da direção nacional da Consulta Popular. 

Edição: Marcos Barbosa