Se fechar em casa não é uma tarefa fácil. Mas se torna ainda mais árdua quando os poucos cômodos precisam ser compartilhados com muita gente. As coisas pioram quando falta água e dinheiro para garantir as refeições. Nesta matéria, moradores das periferias do Recife relatam – entre aglomerações e panelaços - como a quarentena tem sido encarada em seus bairros.
Na zona norte do Recife, o analista de sistemas Arlindo Barbosa conta que o comércio do bairro em que vive, o Morro da Conceição, continua abrindo normalmente. "Mas as pessoas não estão indo. Na semana passada as pessoas ainda não estavam respeitando a quarentena, continuavam indo aos estabelecimentos. Mas esta semana as pessoas estão dentro de casa de verdade, respeitando, e até os bares acabam fechando cedo", conta.
Mudou a rotina também na mercearia, onde normalmente alguns vizinhos - muitos de idade já avançada - costumam se reunir para conversar. "O proprietário não está mais deixando os clientes comprarem para consumir no local. Só deixa se for para voltar para casa", comenta Barbosa.
A alguns quilômetros de distância, ainda na zona norte, o relato é outro. "A quarentena não tem sido respeitada de forma voluntária. Em Nova Descoberta vi bares e comércios funcionando normalmente no último domingo (22)", conta Camila Borges, cientista social. "A situação só melhorou quando as instituições fiscalizadoras obrigaram comércios não essenciais a fecharem", completa.
O sentimento é parecido com o da professora Yasmin Santos, moradora do Ibura, no outro extremo da cidade, na zona sul. "Aqui muita gente está sem ir ao trabalho, mas não necessariamente ficando em casa. Ficam circulando no bairro, se juntando com vizinhos para beber, conversar, jogar futebol", afirma. "Os comércios continuam funcionando normalmente. Nada parou", diz a moradora da UR-2.
São muitos os motivos que levam essa população a desrespeitar o momento de quarentena. No bairro do Vasco da Gama, zona norte, a agente comunitária de saúde Auriana Michele conta que o fluxo de pessoas no bairro está menor mas ainda há muita gente nas ruas. "Vejo muitas pequenas aglomerações em calçadas e mercadinhos cheios.. Muitos são idosos", alerta. "Há o fator tédio e muitos não têm consciência da dimensão do que estamos vivendo. Mas também existem questões concretas como a falta de espaço para todos em casa e a necessidade de sair para trabalhar, como os garotos das entregas delivery" pontua.
Camila Borges lembra que essa necessidade é a mesma de quase metade da população brasileira. "São pequenos comerciantes, diaristas, pessoas que vivem de 'bicos', todos trabalhadores precarizados que não conseguem se manter em quarentena porque ficar em casa significa não conseguir renda para suas necessidades básicas, como alimentação", afirma Borges. No Morro da Conceição alguns trabalhadores informais estão tentando dar um jeito de ganhar seu recurso, tentando reduzir o risco de contaminação. "Alguns moradores da minha rua vendem frutas e verduras. Todos os dias os vejo saindo com seus carros de mão cheios de frutas. Mas agora eles lavam bastante as frutas na hora que vendem, antes de entregarem ao cliente", conta Arlindo Barbosa.
Camila considera que o poder público terá papel fundamental para o cumprimento da quarentena. Além da necessidade de uma renda básica para garantir que essa massa de trabalhadores não precise sair de casa para trabalhar, será necessário ainda um trabalho de fiscalização acompanhado do processo educativo. "Só percebi as ruas dos subúrbios mais esvaziadas a partir do momento que os poderes executivos ordenaram o fechamento do comércio e quando as instituições passaram a ser mais incisivas na fiscalização", avalia.
Outra esfera do poder público, no entanto, parece estar remando no sentidocontrário. Na última terça-feira (24), o presidente Jair Bolsonaro fez umpronunciamento de cinco minutos em rede nacional de rádios e televisões classificando mais uma vez o coronavírus como "gripezinha" e alegando que o país deveria voltar à normalidade, sob risco de sofrer grande impacto econômico.
Auriana Michele diz ter visto a diferença no Vasco da Gama. "Todos percebemos o aumento do fluxo de pessoas nas ruas", conta. No Ibura ocorreu o mesmo. "O movimento nas ruas aumentou. Tenho muitos vizinhos que apoiam o presidente e, num grupo do Facebook com moradores do bairro, vi muita gente apoiando o discurso dele e até pessoas que dizem não ter votado nele, concordaram com a posição dele", conta Yasmin Santos.
No Morro da Conceição, por outro lado, o respeito a quarentena segue. "Aqui as pessoas não deram ouvido ao discurso de Bolsonaro. A única coisa que mudou foi que nos dois dias seguintes àquele pronunciamento (quarta e quinta-feira, 25 e 26) a população fez panelaço à noite. Eu nunca tinha visto a população do Morro fazer panelaço, mas está fazendo e muito", conta Arlindo Barbosa.
A cientista social Camila Borges avalia que parte da população "ainda não entende o quão avassalador é o contágio do coronavírus". "E o discurso de um presidente da República minimizando os efeitos da pandemia e colocando a economia como prioridade em detrimento de milhares de vidas é, no mínimo, criminoso", critica. "O efeito só não é pior porque os meios de comunicação estão incansavelmente alertando sobre os riscos os quadros sanitários de outros países", completa Borges.
A agente de saúde Auriana Michele diz que a todos que encontra nas ruas, reforça o "conselho clichê". "Fiquem em casa e só saiam em casa de extrema necessidade - farmácia, mercado - e não use isso como desculpa para sair todos os dias. E ter os cuidados de higienização", pontua. A dinâmica na Unidade Básica de Saúde junto à qual atua, no Vasco da Gama, precisou restringir serviços para reduzir o fluxo de pessoas. "Agora só atendemos as consultas já marcadas, os atendimentos pré-natal, fazemos troca de receitas de remédio controlado e a sala de vacinas só está funcionando com H1N1 – e só até finalizar o período da campanha voltada para idosos", avisa. "Os profissionais de saúde estão de prontidão, mas evitando aglomerações, sobretudo de idosos".
Sobre as diferenças percebidas de uma localidade para outra, mesmo que a população em ambas tenham realidade econômica similar, Camila Borges avalia que são características de um "movimento de comportamento coletivo, espontâneo, de reação". "Se os moradores de um determinado bairro continuarem nas ruas, calçadas, interagindo normalmente como faziam antesdo covid-19, a comunidade ao redor tende a acreditar que a pandemia não chegará até eles", explica. "É uma sensação de distanciamento do caos", diz a cientista social. "Mas a partir do momento que grande parte dos integrantes daquela comunidade passa a se isolar, a sensação é a de que a pandemia está mais próxima e gera a necessidade de que as outras pessoas também adiram à quarentena", completa.
Neste sentido, Borges reforça os desafios do poder público para dialogar com os diferentes setores da sociedade para garantir uma quarentena total. "As orientações de isolamento social são importantes, mas só são efetivas quando aceitas e legitimadas pelos grupos. Por isso é tão importante que essas ações educativas sejam direcionadas de acordo com a realidade e linguagem de cada grupo", diz.
Benefício de R$600 e como recebê-lo
Ponto crucial para garantir que milhões de trabalhadores e trabalhadoras possam garantir seu sustento sem precisar sair para trabalhar, um benefício foi aprovado nessa quinta-feira (26) por iniciativa da Câmara Federal. Os deputados aprovaram um auxílio emergencial mínimo de R$600 mensais para desempregados, trabalhadores autônomos e microempreendedores de baixa renda.
Mas para entrar em vigor a medida precisa ser aprovada no Senado - que deve votar nessa segunda-feira (30) - e depois ser sancionada pelo presidente da República. O Governo Federal precisará ainda editar um decreto informando o
meio de pagamento.
O auxílio é garantido por três meses (pagos em abril, maio e junho) e podem ser prorrogados por até três meses mais (até setembro). No máximo dois membros da mesma família podem receber (totalizando R$1.200). Mulheres chefes de família que sustentam o lar sozinhas poderão acumular dois benefícios (R$1.200).
Para recebê-lo basta ter a partir de 18 anos, não estar num emprego de carteira assinada, não ser beneficiário de assistência (BPC) e não ser aposentado. Se você se encaixa nesses quesitos, mas sua renda familiar mensal for igual ou superior a R$3.117 (três salários mínimos) ou a renda por membro da família for R$519 (meio salário mínimo), você não tem direito ao benefício. Trabalhadores que contribuem para o INSS por conta própria ou registrados como Microempreendedor Individual (MEI) e se encaixam nas
regras acima também têm direito.
Os beneficiários do programa Bolsa Família não poderão acumular os dois auxílios, mas têm direito de nestes meses abrir mão do Bolsa Família e receber apenas o auxílio emergencial, de valor muito maior que o Bolsa Família. Ao fim dos meses de quarentena, voltarão a receber o Bolsa Família. O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico, com informações de quem recebe Bolsa Família e BPC) será utilizado pelo governo para agilizar a autorização, mas as pessoas que não são beneficiárias de programas sociais poderão se inscrever através de uma plataforma digital que será lançada em breve.
Quando se chegou a um consenso de que um auxílio financeiro seria inevitável, o presidente Jair Bolsonaro propôs o valor de R$200, mas o Congresso Nacional puxou para cima. Os partidos de esquerda - PT, PSB, PDT, PSOL e PCdoB - propuseram um salário mínimo (R$1.039), mas o valor final estabelecido foi de R$600.
Para os trabalhadores formais, o Governo Federal prepara um pacote emergencial para auxiliar as empresas durante os próximos meses. O provável é que aquelas que aderirem não poderão demitir funcionários durante a quarentena (período mínimo de três meses).
Edição: Monyse Ravena