O avanço da pandemia do coronavírus, a necessidade de ampliação do isolamento social, a possibilidade de um isolamento total (“lockdown”), a queda de renda das famílias que dependem do trabalho informal e dos pequenos comércios, o aumento das demandas por serviços de assistência social do Estado. No meio de março o estado de Pernambuco recebeu seus primeiros turistas com sintomas da covid-19 e, 50 dias depois, o estado vê o número de diagnosticados se aproximar dos 10 mil, os mortos superarem a casa dos 800 e crescer o número de famílias demandando as refeições prontas distribuídas gratuitamente pelo poder público.
Diante deste quadro, o Brasil de Fato Pernambuco entrevistou o secretário executivo de Assistência Social do Governo do Estado, Joélson Rodrigues. Na entrevista o secretário trata da parceria para a distribuição de duas mil refeições por dia, financiadas pelo estado; sobre o avanço da pobreza em Pernambuco; o papel da assistência social; as responsabilidades do Governo Federal e do Congresso; e sobre o papel dos grupos, ONGs e movimentos que estão se voluntariando no atendimento às populações em situação de vulnerabilidade.
Brasil de Fato: De onde partiu a ideia da parceria para a distribuição de refeições?
Joélson Rodrigues: O atendimento à população em situação de rua já ocorria por meio de diversas iniciativas da sociedade. Mas com a pandemia, alguns grupos que atuavam cotidianamente precisaram pausar devido as restrições sanitárias. Por isso foi importante a organização desses coletivos, sobretudo capitaneados pelo Armazém do Campo, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que têm distribuído diariamente mais de mil refeições somando café da manhã e jantar. É uma mobilização que tem contado com diversos coletivos da sociedade civil.
E sabemos que a demanda é crescente, cotidiana, e não estavam dando conta. Houve uma oferta do Senac, que disponibilizou o restaurante-escola e seus profissionais, para produzirem refeições para atender essa demanda. Então foi uma junção de forças: o Estado realizando a compra direta da agricultura familiar, o Senac com sua estrutura e profissionais e a distribuição em parceria com os coletivos que já estavam atuando nisso e se disponibilizaram para fazer a entrega. Não quisemos fazer algo paralelo, mas somar forças. Há uma concentração grande de pessoas em situação de rua no centro do Recife, mas há uma demanda em bairros das periferias que não estávamos conseguindo atender. E acreditamos que através dessa distribuição, com parcerias, conseguiremos atender o máximo de pessoas que estão em insegurança alimentar.
O programa é uma parceria entre as secretarias estaduais de Desenvolvimento Econômico; Prevenção à Violência e às Drogas; e Desenvolvimento Social, Criança e Juventude, à qual estou vinculado. Importante destacar que há outras iniciativas, como o Pernambuco Solidário, que tem arrecadado donativos e reencaminhado. A parceria é de pelo menos 90 dias, três meses, até os primeiros dias de agosto.
BdF: E como esses alimentos estão sendo distribuídos entre os municípios?
JR: A Prefeitura do Recife já possui dois restaurantes populares, que têm produzido e distribuído refeições, tem seus pontos de distribuição, mas também é limitado, entre 1.200 e 1.600 refeições por dia, entre almoço e jantar. Então a própria prefeitura identificou onde estavam os “vazios”, onde havia demanda mas não atendimento, e com o apoio da sociedade civil estamos indo nos lugares em que o poder público não conseguia chegar. Essas 2 mil refeições adquiridas pelo estado estão sendo distribuídas entre Recife, Olinda, Jaboatão. São as cidades mais próximas. Não poderíamos ir mais longe, já que é comida pronta e corria risco de comprometer a refeição.
BdF: Os grupos que estão atuando na ponta têm relatado um número crescente de pedidos de refeição por famílias que não estão em situação de rua, que têm saído de suas casas, até de bairros mais distantes, para receber as refeições gratuitas. Como a secretaria tem recebido essas notícias do alastramento da vulnerabilidade social?
JR: Estamos cientes dos impactos econômicos e sociais dessas medidas restritivas, do fechamento do comércio formal e informal. O mundo do trabalho está essa loucura, não é de hoje, e sabemos que muitas dessas pessoas “se viravam” prestando serviços, vendendo numa feira, como ambulante no comércio informal, serviços que estão proibidos pelas restrições sanitárias. Então muita gente que tem sua casa ou seu barraco, está em vulnerabilidade, em insegurança alimentar. Temos ciência disso. Está acontecendo aqui e no mundo todo.
Há pessoas que estão nesse universo e têm procurado tanto o Armazém do Campo, como os Pontos de Cuidado do Governo do Estado [em funcionamento no Recife e Paulista, além de Olinda e Jaboatão a inaugurar]. Todo mundo que está no atendimento à população tem percebido isso. Essas pessoas não se deslocariam de seu bairro, de sua casa, para ficar numa fila, eles não o fariam se tivessem outra alternativa. Eles realmente estão precisando. Por isso não estamos vetando ou criando qualquer constrangimento.
Sei que a Prefeitura do Recife iniciou a distribuição de cestas básicas para famílias que estão no CadÚnico, que recebem – ou não – Bolsa Família. Isso é importante. Mas ainda assim há aquelas que não conseguiram acessar, por algum motivo, ou que a cesta básica não é suficiente para atender as suas demandas. Mas infelizmente ainda não conseguimos dar outra resposta para evitar essa insegurança alimentar e nutricional.
BdF: Como o Governo do Estado está se preparando, no quesito de políticas públicas para esse período que se abre de crescimento da pobreza e da vulnerabilidade social e econômica?
JR: O atendimento à população de rua sempre foi muito difícil. As políticas sociais têm histórico de desinvestimento. Quando a pandemia chegou o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) estava quase morrendo, seja pelos cortes de verbas ano a ano, seja pela Emenda Constitucional 95 [conhecida como “PEC do Teto” ou “PEC do Congelamento”]. E para se ter uma ideia, começamos o ano de 2020 sem recurso garantido para manter os Centros de Referência em Assistência Social [CRAS e CREAS], serviços de acolhimento, Centros Pop [atendimento à população de rua], restaurantes populares. A gente já não tinha recurso. Estávamos lutando internamente para tentar recompor o orçamento para não fecharmos as portas desses serviços. De repente tem uma pandemia, onde a assistência social é toda demandada, e mesmo assim, até o presente momento, esse orçamento não foi recomposto pelo Governo Federal. Até agora não entrou um centavo para a assistência social.
Na sexta-feira passada (1 de maio) o Governo Federal abriu uma oferta, que os municípios podem aceitar, com dinheiro para ser investido em três serviços: manter comida onde há acolhimento de idosos e pessoas com deficiência; para organizar medidas de acolhimento de população de rua; e para a compra de EPIs para trabalhadores da assistência social, importante. Mas o cálculo foi totalmente equivocado. Pegaram os números da base do CadÚnico, multiplicaram por um determinado valor e disponibilizaram para o município. Mas veja, com acolhimento o município investe de R$2 mil a R$2.500 ao mês por pessoa acolhida, enquanto o Governo Federal ofereceu R$400. Se o município aceitar esse valor, terá que se comprometer e bancar o restante do valor. Qual o município que tem condições hoje de bancar isso?
O investimento em políticas sociais é fundamental neste momento. Se a gente não pretende investir no sistema prisional e nem em velórios, temos que investir na prevenção. Sei que há muito preconceito de parte de políticos em investir em políticas sociais. Mas temos que defender, isso é estruturante para as políticas sociais. Sem falar no Auxílio Emergencial, que não poderia estar do jeito que está, deveria ser mais célere.
Eu sou dos que defendem a Renda Básica de Cidadania. Sei que é um tema tabu envolvendo a redistribuição de renda. Mas a partir de uma reforma tributária adequada, com taxação de grandes fortunas, a gente conseguiria garantir essa renda de cidadania. Acho que é isso que deveria estar sendo trabalhado no Congresso Nacional, garantir uma renda básica para todo e qualquer cidadão brasileiro, que desse as condições de acessar os direitos garantidos na Constituição Federal.
BdF: E qual a importância dos trabalhos desenvolvidos pelos grupos organizados da sociedade civil nesse cenário?
JR: Uma grande vantagem da sociedade é a agilidade. Desde o primeiro momento a sociedade civil se organizou e respondeu de imediato. O poder público tem suas limitações, mesmo diante de uma pandemia conseguimos ser mais rápidos, mas não o suficiente diante da necessidade. Um dos exemplos são os nossos Pontos de Cuidado: temos dois em funcionamento, mas ainda dois para abrir. E como ficam essas pessoas enquanto não está aberto? Sem um espaço adequado para alimentação, higienização. As duas mil marmitas a mais, que conseguimos com o Senac, só conseguimos agora. Mas a sociedade civil não, desde o início conseguiu dar respostas mais rápidas. Não cabe à sociedade segurar essa onda, mas cumprem um papel fundamental até o poder público conseguir se estruturar e dar respostas. Por isso tentamos andar juntos. Os órgãos de controle precisam separar as coisas, mas temos o entendimento que atuando coletivamente funcionamos melhor e acertamos mais.
Edição: Monyse Ravena