Pernambuco

Entrevista

“O semiárido também sofre com o desequilíbrio na Amazônia”, alerta coordenador da ASA

Alexandre Pires avalia que a MP 910 ou projetos similares impactam sim o Nordeste

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Alexandre Pires, écoordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), grupo que reúne dezenas de ONGs, movimentos e coletivos que atuam na região semiárida do país - Reprodução/Caatinga

Pode ser votada a qualquer momento, na Câmara Federal, a Medida Provisória 910/2019, também conhecida como “MP da Regulamentação Fundiária” ou ainda “MP da Grilagem”. A medida se propõe a regularizar, em apenas dois anos, cerca de 600 mil imóveis rurais irregulares em terras públicas, ou seja, tornar legais mais de meio milhão de ocupações ilegais de terras públicas. Medida seria votada na noite da última terça (12), mas por pressão de parlamentares e de movimentos na internet, a MP acabou retirada de pauta, mas pode ser votada nos próximos dias.

A MP 910 altera a atual norma sobre o tema – o famigerado Novo Código Florestal, de 2011. A lei aprovada ainda no governo Dilma Rousseff e com apoio de partidos de esquerda estabeleceu que ocupações irregulares de terras públicas que tivessem ocorrido até 22 de julho de 2008 seriam anistiadas, com os ocupantes (“grileiros”) ganhando para si aquelas terras, desde que cumprissem uma série de normas. Mas a mudança proposta agora, na MP 910, é que a data da ocupação para obter a anistia seja atualizada para 5 de maio de 2014, beneficiando pessoas e empresas que ocuparam terras públicas de maneira consciente, já após a aprovação da lei e já cientes de que estavam agindo irregularmente. Os infratores serão novamente premiados, em vez de punidos.

Para completar, o projeto relatado pelo deputado federal Zé Silva (SD-MG) não visa beneficiar apenas os ocupantes irregulares de minifúndios, mas também ocupantes irregulares de até 22,5 mil hectares de terras públicas. A norma coloca como medição da propriedade o “módulo fiscal”, unidade de medida variável utilizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Um módulo fiscal pode ter 180 hectares (como na região Sul do país) ou 1,5 mil hectares (em partes da região Norte). Enquanto a lei atual, de 2011, concede anistia para ocupantes de até 4 módulos, o novo projeto quer anistiar grileiros que se apropriaram de até 15 módulos fiscais.

Defensores do meio ambiente e parlamentares da bancada ambientalista afirmam que o projeto acaba por estimular a atuação de grileiros e desmatadores. Para falar sobre o tema, o Brasil de Fato Pernambuco entrevistou Alexandre Pires, coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA Brasil), grupo que reúne dezenas de ONGs, movimentos e coletivos que atuam na região semiárida do país. Pires considera que o foco prioritário da MP 910 não é o Nordeste, mas a região Amazônica. E ainda assim pode trazer consequências negativas para o interior nordestino.

Brasil de Fato Pernambuco: Qual o cenário relativo a terras públicas aqui na região Nordeste e no semiárido? Qual o possível impacto que a MP 910 pode causar na nossa região?

Alexandre Pires (AP): Podemos dizer que a grilagem de terras públicas na região Nordeste e no semiárido brasileiro acontece desde séculos atrás, quando no período colonial a Coroa, e em seguida o imperador, destinava faixas de terras para aqueles que tinham títulos de nobreza. Já na República também tivemos a grilagem de terras, que se reflete na grande concentração de latifúndios na nossa região, sobretudo na região do litoral, na zona da mata atlântica, onde as terras foram destinadas para a extração do pau-brasil e em seguida o plantio de cana de açúcar. No interior os latifúndios são utilizados mais para a criação de gado.

No entanto essa MP 910 e demais projetos que visem discutir a regularização fundiária tem um interesse muito grande do agronegócio nas terras públicas da região amazônica. Desde o início do governo Bolsonaro tem se ampliado o número de áreas desmatadas e ocupadas na região. O interesse deles é ocupar essas terras públicas, que são terras destinadas às unidades de conservação ou destinadas a territórios indígenas, quilombolas, à reforma agrária, às pessoas que não têm terra para trabalhar.

Alguém pode pensar que isso não tem nada a ver com o semiárido ou com o Nordeste. Mas a região semiárida, que tem como biomas a caatinga e o serrado, sofremos também influência pelo desequilíbrio noutros biomas como no caso da floresta amazônica. Seria muito importante para nós que essa medida seja barrada, para mantermos o equilíbrio ambiental e a destinação devida daquela floresta e das terras públicas para o interesse público, coletivo, não para o interesse privado do capital.

BdF PE: Essa parte de regularizar pequenas ocupações irregulares poderia trazer algo positivo para pequenos agricultores? É comum esse tipo de ocupação aqui no Nordeste?

AP: Esse argumento de que a MP 910 beneficia os pequenos agricultores, mas isso não é real. O interesse dessa medida é atender aos interesses do agronegócio. Existem mais de 140 milhões de títulos que deveriam ter sido entregues, titulações de comunidades quilombolas, terras indígenas e assentamentos da reforma agrária permitidos pelo Incra em terras públicas. Por que essas titulações não ocorreram ainda?! Então a MP é movida para dar títulos de terra ao agronegócio. É algo descarado.

E quando falamos de terras públicas, não estamos falando somente das terras amazônicas, mas também de unidades de conservação da biodiversidade, parques nacionais, terras quilombolas, terras indígenas, terras de assentamentos da reforma agrária que ainda não foram titulados e emancipados [pelo Incra] - mesmo com todo o trâmite, tudo regular, leva-se anos até o Incra emancipar as áreas de assentamentos da reforma agrária. Então abre-se mão de muitos interesses públicos para ceder a uma pressão do capital e do agronegócio, desejando ocupar essas terras públicas para usar de maneira privada. Estamos falando de aproximadamente 60 milhões de hectares de terras que poderiam ser griladas, sendo em seguida doadas pelo Estado brasileiro a esses grandes fazendeiros.

BdF PE: Há quem afirme que essa regularização proposta pela MP pode acirrar conflitos por terras, trazer prejuízos para pequenos agricultores e povos tradicionais. Você concorda com isso? Poderia explicar?

AP: Destaco quatro aspectos dessa MP 910 e que, caso ela venha a caducar [se não for aprovada até 19 de maio], certamente são aspectos que estarão presentes num futuro Projeto de Lei. Primeiro o marco temporal, já que essa MP estabelece como marco temporal do desmatamento o ano de 2018. Ou seja, toda a área que foi desmatada até 2018 recebe uma anistia do Estado. Ninguém precisaria pagar ou se responsabilizar por esse crime. O segundo aspecto é a dispensa de vistoria. Se alguém desmatou determinada área, tocou fogo, poderia dizer que essa área está sob a posse dele e não necessita vistoria, sem qualquer garantia sobre a veracidade. Isso inclusive foi considerado ilegal pelo STF.

O terceiro aspecto é a dispensa de legitimação do confrontante. Ou seja, se um grileiro se apossar de uma parte de terra indígena, pode desmatar, queimar, depois reivindicar a posse daquela terra, não haverá vistoria, e não será necessário escutar aquela população indígena para confrontar o grileiro. É horrível do ponto de vista legal. O quarto aspecto é a dispensa de licitação no valor da terra. Há casos em que se paga entre 5% e 15% do valor da terra, mas a MP retira isso, então há perda de recursos. Esses quatro pontos são muito preocupantes e que vão contra o interesse público e contra a Constituição no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas.

Quando falamos dos conflitos, estamos nos referindo a esses quatro aspectos. Se aplicando essa MP, ou um projeto de lei com os mesmos aspectos, se ampliam os conflitos no campo. Aqueles agricultores, extrativistas, ribeirinhos, indígenas que estejam numa determinada região e os grileiros chegam em têm suas práticas ilegais agora acobertadas por uma nova lei, esses povos não vão simplesmente aceitar os grileiros tomando suas terras, mas vão lutar pelos seus territórios.

O mundo e o Brasil vivem um momento de pandemia do coronavírus, os partidos fizeram um acordo de nesse período só discutir no Congresso assuntos de interesse de saúde pública em função da pandemia, mas o agronegócio e o Governo Federal acabam usando esse momento de fragilidade, de falta de mobilização social, para tentar emplacar essa medida provisória extremamente danosa aos interesses públicos da população brasileira.

Edição: Marcos Barbosa