Na última quarta-feira (20) o INEP, instituto do Ministério da Educação que organiza o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), finalmente confirmou o adiamento da prova. A notícia veio um dia após o Senado Federal aprovar um projeto de lei (PL) mudando a data do exame. O PL seria votado na Câmara, confirmando o adiamento. Há semanas, entidades representativas dos estudantes, como a UNE, a UBES e movimentos populares, têm feito pressão pela mudança. Inicialmente, o Enem estava previsto para os domingos 1º e 8 de novembro (prova tradicional, impressa) e 22 e 29 do mesmo mês (prova digital).
O adiamento trouxe algum alívio para educadores e estudantes das periferias, que têm sentido a desigualdade de acesso à educação se ampliar durante a quarentena. Um dos estudantes é Victor Martins, de 19 anos, morador do Morro da Conceição. Ele cursou o ensino médio num bairro vizinho, na Escola de Referência em Ensino Médio (EREM) Dom Vital, da rede pública de ensino. Em casa, ele não tem computador e nem livros didáticos, mas reconhece que sua situação ainda é melhor que a de muitos amigos. “Minha família consegue poupar a mim e meu irmão da obrigação de trabalhar. Conseguimos nos dedicar prioritariamente ao estudo”, comemora. Ele se mostra satisfeito por ter um local apropriado de estudo em quarto, que compartilha com o irmão mais novo.
O jovem conta que a postura do ministro da Educação, Abraham Weintraub, de tentar manter a data inicial da prova, lhe causou “revolta”. “Não tem lógica nenhuma manter a data no atual cenário, favorecendo muito a classe média e alta em comparação a quem está na margem da sociedade, como nós da periferia”, reclamou. Ele diz que o momento de pandemia amplia o abismo entre os jovens de diferentes realidades socioeconômicas. “Há pessoas que neste período de calamidade conseguem manter o foco graças às condições que seus pais fornecem. Mas nós da periferia temos que nos contentar com vídeos de Youtube que nem oferecem o conteúdo completo. Não tem como competir”, completa.
Victor sonha em ser biólogo cursando bacharelado em Ciências Biológicas. “Quero me especializar em zoologia. Desde muito novo gosto dos animais e sou muito curioso sobre eles. Quero dedicar minha vida a isso, é o que tenho no meu coração”, diz ele, que já fez o Enem em 2018 e 2019. Na primeira tentativa, ele avalia que a escola contribuiu, mas que lhe faltava “suporte”, então o aprendizado dependia mais dele. “Estabeleci um plano de estudo em casa, revisando os assuntos que mais caem no Enem. Fiquei muito ansioso, porque sabia que poderia entrar numa universidade a depender do meu desempenho”, recorda. “Mas cheguei na prova sem experiência e sabendo pouco. Foi frustrante, mas serviu de aprendizado”, garante.
No ano seguinte, 2019, sua vontade de ser aprovado encontrou o recém-fundado Cursinho Ciranda Popular, que o jovem descreve como “um cursinho gratuito que tem como objetivo democratizar a educação e dar oportunidade para as pessoas que não têm condições de pagar um cursinho pré-Enem”. Desta vez a nota dele evoluiu. “Foi um desempenho muito melhor e agora estou na lista de espera em duas instituições: em 3º lugar na UFRPE e 4º na Unibra”, conta Victor, confirmando que em ambas é para o desejado curso de Ciências Biológicas. A pandemia do coronavírus, no entanto, alterou os calendários das instituições e afetou o remanejamento da lista de espera. “Mas estou na esperança de entrar ainda este ano”, confirma. Mas, enquanto não sabe se será chamado, segue estudando, novamente no cursinho do seu bairro.
As aulas da turma de 2020 do Ciranda Popular tiveram início no dia 11 de março. Uma semana depois, o Governo de Pernambuco publicou o decreto recomendando o isolamento social em virtude da pandemia, levando à suspensão das atividades para os 40 estudantes. “Demos continuidade ao curso utilizando plataformas online e priorizando conteúdos mais leves ou que tivessem ligação com o atual momento”, conta Marcones Oliveira, professor de Geografia e um dos coordenadores do cursinho. O Ciranda integra a rede nacional de cursinhos populares “Podemos+”, que recomendou séries, livros, documentários e álbuns de música como foco do processo educativo durante a pandemia. A rede é iniciativa do movimento Levante Popular da Juventude.
O coordenador do cursinho conta que, no novo modelo, é impossível manter o mesmo ritmo das aulas presenciais. “Entramos em contato com os estudantes e traçamos um plano com base nas condições que eles apresentaram. Os alunos enfrentam limitação no acesso à internet, muitos não têm um ambiente adequado para o estudo”, comenta Marcones. “Mas principalmente a pandemia mexe com o psicológico de todos. Houve diminuição das rendas familiares, tem desemprego”, completa ele, se queixando ainda que o poder público não garante condições mínimas para que as pessoas fiquem em casa. Victor confirma o quadro. “Muitos pais de famílias daqui são autônomos e estão sem assistência para alimentar a família. Não têm internet. Enquanto quem é de classe média e alta pode pagar um bom cursinho online. É uma desigualdade violenta”, avalia.
A professora de Biologia do cursinho, Andressa Alves, pontua que a dificuldade é ainda maior para as meninas. “Elas têm se queixando que não conseguem estudar em casa, porque os pais as colocam para fazer as tarefas domésticas, já que os adultos continuam trabalhando”, destaca. Ela também dá aulas na rede pública estadual. “Recebi relatos de estudantes que não estão conseguindo dormir direito, ansiosos. Eles sabem que o sistema é injusto com eles e ficam angustiados, vendo ir por água abaixo aquela chance de mudar a realidade deles, da família, da comunidade”, lamenta Andressa.
O estudante Victor Martins não possui computador, mas comemora ter celular e internet. “Me ajuda bastante”. Os livros didáticos precisaram ser devolvidos à escola ao fim do ensino médio. “Mas tenho livros de literatura, bons para a expansão do meu repertório sociocultural”, avalia, confiante. “Estou conseguindo manter uma rotina de estudos, exercícios, leitura e produção de textos”, diz ele, que também pondera. “Mas está sendo bem difícil, porque não temos a presença de um professor ou um amigo para tirar uma dúvida. É como se eu estivesse sozinho”, lamenta o jovem. “O isolamento social desmotiva”. A professora Andressa Alves completa: “educação é diálogo. O estudante não é um depósito onde os professores colocam conhecimento. O aprendizado também depende do questionamento, da contribuição do estudante. Por isso as aulas presenciais são necessárias nesse processo”, diz ela, que além de bióloga, é doutora em etnobiologia.
Batalha no Congresso
Pelo reconhecimento do papel fundamental das aulas presenciais, o Senado aprovou, por 75 votos favoráveis e um contra, o PL 1.277/2020, estabelecendo a realização do Enem apenas após a conclusão do ano letivo nas escolas da rede pública de ensino. Mas para entrar em vigor o PL precisa ser aprovado também na Câmara Federal. E o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), sinalizou que pode não colocar em votação, desde que o Governo Federal opte por adiar.
O Ministério da Educação (MEC) respondeu adiando o Enem, mas sem cumprir o acordo firmado com o Congresso Nacional de montar uma comissão mista (entre governo e representantes dos estudantes) para definir o novo calendário do Exame Nacional do Ensino Médio. Em vez disso, o MEC afirma que a prova pode ser adiada por um prazo entre 30 ou 60 dias, independente do calendário letivo das escolas públicas; ou mesmo não haver adiamento, já que este depende de uma consulta pública feita pela internet para os inscritos na prova.
O prazo de inscrição, que se encerra nesta sexta-feira (22), também é um ponto de discussão. A pandemia e a ausência da escola podem ter prejudicado a inscrição de muitos estudantes que não possuem computador ou internet em casa. Por isso o projeto aprovado no Senado também previa a alteração do prazo de inscrições. As posturas do MEC motivaram uma nota crítica da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação (CNTE), assinada pelo sindicato dos professores da rede pública de Pernambuco (Sintepe), pedindo à Câmara que aprove o PL 1.277/2020 e reduza a margem de manobras do Governo Federal.
A mudança de regras através da Câmara Federal também é vista como caminho mais seguro por Marcones Oliveira. “Adiar o Enem é o correto a se fazer. O Senado aprovou graças à pressão de entidades estudantis, movimentos, partidos e estudantes. Mas precisamos continuar mobilizados e atentos, a pauta precisa passar pela Câmara”, exige o coordenador, que além de geógrafo é mestre em Ciência Política. O estudante Victor Martins revela alívio pelo adiamento. “Foi importante. É uma vitória dos estudantes e docentes que se importam com a democratização da educação”. Andressa Alves pondera que os estudantes, apesar de felizes com a vitória parcial, seguem apreensivos. “Porque está evidente que nesse governo não há chance para o povo, não há chance se você não lutar muito”, pontua.
Edição: Marcos Barbosa