É madrugada em Afogados da Ingazeira, sertão de Pernambuco. Mais um ônibus chega de São Paulo, transportando clandestinamente pernambucanos que estão retornando do Sudeste. O veículo, que fez boa parte do trajeto em estradas de barro para não ser visto, estaciona em alguma comunidade rural, onde os familiares dos passageiros já aguardam, em seus carros, para levar os parentes para casa. Assim como Afogados, outros municípios do interior de Pernambuco e do Nordeste têm recebido, semanalmente, migrantes retornando forçadamente a sua cidade natal, fugindo do desemprego e da exposição ao coronavírus.
Esse tipo de transporte clandestino, que sempre existiu, se intensificou com a pandemia. “As pessoas não estão conseguindo trabalho e tem o medo da infecção. No início da pandemia a região do Pajeú passou a receber muitos ônibus clandestinos, vindos principalmente de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília”, conta Artur Amorim, secretário de Saúde de Afogados da Ingazeira. Na tentativa de driblar a fiscalização das estradas, esses transportes chegavam normalmente nos finais de semana, entre a sexta e a segunda-feira, sempre de madrugada. “No início chegou ônibus com 30 pessoas, todas aqui para Afogados. Mas esse número variava, alguns chegavam com 15 pessoas, outros com 10 e outros com apenas uma pessoa”, recorda Amorim.
A frequência dos transportes clandestinos chegando ao Sertão do Pajeú foi maior nos meses de março e abril, mas o número caiu em maio. “Foi diminuindo quando fomos coibindo. Montamos operações em conjunto da Secretaria de Saúde com a Polícia Militar e o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), dando plantões de madrugada e flagrando as chegadas. Só aqui em Afogados foram interditadas cinco empresas que faziam esse tipo de transporte”, diz o secretário. Além dos ônibus, muitos migrantes chegaram em carros de passeio.
Os passageiros que têm por destino outros municípios de Pernambuco ou da Paraíba são realocados em transportes regulares, com custos assumidos pela empresa de transporte clandestino. Ações similares ocorreram em São José do Egito e Brejinho, também envolvendo as secretarias de saúde, os promotores de Justiça locais e a PM. Em Afogados a última apreensão foi na primeira quinzena de maio, um veículo cujo destino final era Taperoá, na Paraíba.
A fiscalização dessas chegadas é fundamental para lidar com outro desafio, que é monitorar a saúde de todas essas pessoas que chegam do Sudeste ou do Distrito Federal sem saber se estão contaminadas. Por isso há sempre uma equipe de saúde junto a PM e ao MPPE nos plantões da madrugada. “É uma operação de guerra. Recebemos as pessoas e já verificamos se há sintomas, pegamos nomes, registramos onde moram e tentamos garantir que elas cumpram 14 dias de quarentena, com nossas equipes de atenção básica realizando visitas periódicas”, garante Artur Amorim.
O município, segundo o secretário, é 100% coberto pela atenção básica de saúde e vigilância sanitária, o que facilita o monitoramento. Mas as equipes têm ganhado um reforço da população. “As pessoas sabem quando chega alguém novo na comunidade, na casa ao lado. Elas mandam mensagens para as equipes de saúde e para a prefeitura, avisando que chegou alguém novo ou informando que o recém-chegado não está respeitando a quarentena”, comemora Amorim. Outros moradores afirmam que a população tem se mostrado assustada com a pandemia e se preservado mais. Para completar, segundo o secretário, as pessoas flagradas violando a quarentena são conduzidas de volta para casa e, em caso de reincidência, são levados a Polícia Civil, onde é feito um termo circunstanciado de ocorrência (TCO), podendo haver detenção a depender da gravidade e das reincidências.
No caso dos afogadenses que precisam ir ao Recife regularmente realizar tratamentos de saúde, a prefeitura disponibilizou em seu site um formulário para a pessoa solicitar um transporte público. “Neste formulário a pessoa deve obter a validação do médico ou enfermeiro da unidade básica de saúde da sua região. Essas pessoas não devem fazer a viagem em carros próprios ou usar aplicativos de carona”, diz o secretário. “Estamos garantindo a ida e volta em carros da prefeitura. Mas isso é para as pessoas que apresentam necessidade urgente de realizar o tratamento, como por exemplo os casos de quimio e radioterapia”, alerta Amorim, afirmando que ao retornar todos passam por novos exames sintomáticos.
O medo da população e as medidas adotadas parecem estar dando certo. O município sertanejo tem conseguido controlar a disseminação do coronavírus. Segundo a prefeitura, Afogados da Ingazeira recebeu, entre março e o dia 26 de maio, 475 pessoas oriundas de outros estados. A população de Afogados – estimada pelo IBGE em 37.260 – cresceu 1,3% num intervalo de poucas semanas. Mas o secretário comemora a sorte de que 400 destes já passaram pelos 14 dias de quarentena sem apresentar sintomas de covid-19. Outros 72 ainda estão no período de observação. O município todo apresentou pouco mais de 50 casos suspeitos, dos quais 47 já foram descartados, um segue em investigação e seis foram confirmados (dos quais cinco já estão recuperados).
Os testes rápidos fornecidos pelo Governo do Estado foram destinados aos profissionais de saúde e segurança, mas no município também foram feitos com os profissionais bancários. Já os testes de maior precisão, os “RT-PCR” (método que busca o vírus no DNA, com coleta através do nariz), são destinados aos “casos graves”, quando o paciente já apresenta dificuldade para respirar. Com o cenário estável e controlado, Artur Amorim espera avançar para um monitoramento mais preciso da população, privilégio de poucos municípios neste momento. “Nesta terça (27) chegaram mil testes comprados pela prefeitura para ampliarmos a testagem na população. Também estamos tentando fechar parceria com a UFPE para ampliar os testes RT-PCR no município”, informa. “A partir de agora os testes estão disponíveis para qualquer pessoa que apresente síndrome gripal, na tentativa de fazer um rastreamento mais efetivo do vírus”, comemora.
Decretos sobre o transporte
O Governo de Pernambuco suspendeu o transporte intermunicipal no dia 23 de março, impactando o deslocamento entre municípios do interior e principalmente entre estes e a região metropolitana do Recife. No início de abril um novo decreto estadual determinou as exceções: só é permitido o transporte intermunicipal de passageiros em casos de fretamento de funcionários para indústrias ou serviços inclusos como atividades essenciais; fretamento de hóspedes do setor hoteleiro de volta para suas residências ou aeroporto; e transporte complementar de passageiros desde que autorizado pela autoridade municipal.
Mas as medidas não alteram o transporte interno na região metropolitana e nem mencionam o transporte interestadual. A Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), consonância com a postura do Governo Federal, tem atuado para manter o transporte interestadual, inclusive conseguindo liminares na Justiça para furar decretos estaduais. No entanto, como alguns estados, como a Bahia, proibiram o transporte interestadual, reduzindo a capacidade de operação regular das empresas do ramo, uma oportunidade para a atuação clandestina.
Edição: Monyse Ravena