O dia 12 de junho é o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A data foi instituída em 2002 pela Organização Mundial do Trabalho (OIT), ligada à ONU, na tentativa de conscientizar a sociedade, os governos, os empresários e trabalhadores sobre a importância de erradicar essa prática que prejudica o desenvolvimento da criança. O cenário de pandemia traz novas preocupações, como o possível crescimento do trabalho doméstico infantil durante o isolamento, o impacto da crise econômica na vida das crianças e os novos cuidados com a saúde dos pequenos.
Ainda não há como ter certeza sobre a situação pós-pandemia, mas nos últimos anos a exploração do trabalho infantil seguia uma tendência de redução no mundo. No relatório de 2011 a OIT afirmava haver 215 milhões de crianças nessas circunstâncias, das quais 115 milhões realizavam atividades perigosas, prejudiciais à saúde física e psicológica. Cinco anos depois, no relatório de 2016, eram 152 milhões de crianças trabalhando (redução de 29,3%), das quais 73 milhões exerciam atividades degradantes. Os índices se referem a pessoas com idade entre 5 e 17 anos de idade.
Estas crianças estão distribuídas de maneira diferente entre os continentes: 72,1 milhões (47,1%) estão no continente africano; outras 62 milhões (40,8%) estão na Ásia e países do Oceano Pacífico; Américas vêm em seguida com 10,7 milhões (7%); Europa e Ásia Central com 5,5 milhões (3,6%); e países árabes com 1,2 milhões (0,8%). O levantamento de 2016 detalha ainda que o grupo das crianças exploradas é formado por 88 milhões de meninos (57,9% do total) e 64 milhões de meninas (42,1%), mas os pesquisadores alertam para a possibilidade de uma subnotificação do trabalho das meninas, já que muitas vezes o trabalho doméstico não é considerado trabalho.
No Recife, um dos responsáveis por pensar estratégias de enfrentamento a essa situação é o advogado carioca Eduardo Paysan Gomes, chefe da Gerência de Criança e Adolescente do Recife. Paysan começou sua atuação com crianças e adolescentes no Rio de Janeiro, no início dos anos 2000, quando conheceu a ONG pernambucana GAJOP. Anos depois viria ao Recife trabalhar com a entidade. Em Pernambuco, ele trabalhou ainda na ONG Cendhec e no Governo do Estado, sempre com projetos junto a crianças e adolescentes. Durante o período, obteve o título de mestre em Serviço Social na UFPE. Na primeira gestão do prefeito Geraldo Julio, Paysan foi chefe da divisão de criança e adolescente, depois trabalhou em Brasília e em 2019 retornou ao estado, assumindo o atual cargo dentro da Secretaria de Direitos Humanos do Recife.
Questionado sobre as características do trabalho infantil no Recife, Eduardo Paysan menciona o trabalho no comércio informal como predominante. “É a venda de caldinho ou amendoim na praia, biscoito e doces no metrô e também aquelas crianças e adolescentes em situação de rua, pedindo no sinal, muitas vezes sem família”, resume. O trabalho infantil tem relação direta com a vulnerabilidade econômica da família. Para enfrentar a situação, o gerente destaca a atuação em conjunto com outros órgãos. “Precisamos de um trabalho integrado do sistema de garantia de direitos, reunindo os oito conselhos tutelares do Recife, o Ministério Público (MPPE), os centros de referência em assistência social (CRAS e CREAS), os serviços de saúde e educação, a Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente (GPCA)”, afirma. Paysan diz não haver dados tão detalhados sobre a caracterização do trabalho infantil no Recife. Os números costumam ser levantados nacionalmente, pelo IBGE.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD) de 2017, com dados referentes ao ano anterior, no Brasil, 2,4 milhões de crianças e adolescentes trabalham – número corresponde a 6% das crianças e adolescentes do país. O Brasil é responsável, sozinho, por 22,4% do trabalho infantil nas Américas e 1,58% no mundo. Os dados do IBGE afirmam que, no Brasil, essas crianças estão mais concentradas nos centros urbanos. Sobre a idade, cerca de 480 mil têm de 5 a 13 anos e 1,9 milhão (80% do grupo) têm de 14 a 17 anos – idade em que o trabalho é permitido, desde que como aprendiz, mas estes adolescentes estão trabalhando informalmente. Entre as crianças e adolescentes trabalhando no Brasil, 49,8% são de famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo.
Eduardo Paysan destaca que muitos casos são de “pobreza intergeracional, em que aquela situação passou da avó para a mãe, até chegar na criança de hoje”, afirmando a necessidade de romper o ciclo. Ele reforça que os dados são inferiores à realidade, já que as famílias não informam todas as atividades das crianças, seja por não considerarem serviços domésticos como trabalho, seja porque as crianças são expostas a atividade ilegais. “Há formas de trabalho difíceis de contabilizar, como a exploração sexual e o trabalho no tráfico, que são algumas das piores formas de trabalho infantil”, destaca, mencionando ainda o trabalho de ajudar a carregar peso ou embalar compras em feiras e supermercados. “O cenário fica pior no momento em que se reduz os recursos e até extingue políticas públicas, tudo somado ao aumento do desemprego. Isso empurra mais ainda as crianças e adolescentes para o trabalho infantil”, lamenta.
Sobre o trabalho doméstico, ele chama atenção que não há proibição para a execução de serviços em casa, mas é preciso cuidado. “As crianças e adolescentes podem e devem ajudar nas tarefas domésticas, mas no que é adequado para a sua idade, não realizando um trabalho ou uma carga de trabalho de um adulto”, esclarece. “Não pode ser algo que prejudique o seu desenvolvimento, seu estudo, seu momento de brincar e ser criança. Arrumar a cama ou lavar louça é diferente de carregar peso ou fazer tarefas que a coloquem em risco”, completa o advogado.
Ainda segundo a PNAD 2017, no estado de Pernambuco 77 mil crianças e adolescentes estão em situação de trabalho infantil. Apesar de preocupante, o número apresenta um grande avanço – queda de 37,4% comparado a dois anos antes, quando o levantamento identificou 123 mil crianças e adolescentes nesta situação. Os 77 mil casos de 2016 apontam que estão 4,1% das 1,9 milhão de crianças e adolescentes pernambucanos estão trabalhando. O percentual coloca o estado no 6º lugar do país com menor índice de ocupação. A taxa é a mais baixa da região Nordeste, onde 6,4% – ou 789 mil – crianças e adolescentes trabalham.
A PNAD, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), detalha ainda a ocupação por faixa etária. Das mais de 650 mil crianças pernambucanas de 5 a 9 anos, 3 mil (0,5%) estão em situação de trabalho; entre as cerca de 580 mil crianças de 9 a 13 anos no estado, 14 mil (2,4%) trabalham; nos 320 mil adolescentes de 14 e 15 anos, 15 mil (4,6%) estão em situação de trabalho; o grande salto vem no grupo de 16 e 17 anos, composto por 340 mil adolescentes, dos quais 45 mil (13,2%) trabalham.
Já o relatório do censo agropecuário de 2017 realizou um levantamento apenas com crianças e adolescentes do campo, detalhando o tipo de estabelecimento em que as crianças rurais trabalham. Os dados, no entanto, consideram apenas os pernambucanos de idade de 5 a 14 anos. Esta pesquisa identificou 27,5 mil pessoas nessa faixa etária em situação de trabalho infantil. O número é bem superior à soma das crianças de 5 a 13 anos na PNAD do ano anterior, que totalizava 17 mil. O censo agropecuário também detalha o tipo de estabelecimento em que trabalham: 21,4 mil (78%) estavam ocupadas em estabelecimentos da agricultura familiar, enquanto 6,1 mil (22%) trabalham para o agronegócio.
A queda nos números de Pernambuco é comemorada pelo gestor como um resultado também do trabalho na capital. “Através de campanhas articuladas com diversos órgãos que integram o sistema de garantia dos direitos das crianças e adolescentes, conseguimos chegar perto de erradicar algumas práticas, através de políticas de assistência social, encaminhamento para receber o Bolsa Família e entrada em serviços de aprendizagem”, destaca ele. Um dos principais espaços de construção de políticas sobre o tema é o Fórum de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, que tem a versão nacional (FNPETI) e a pernambucana (FEPETI-PE), com participação de entidades privadas, da sociedade civil, do Judiciário e Governo Federal.
Questionado sobre os riscos trazidos pela pandemia e o que esperar do pós-pandemia, Eduardo Paysan afirma que não se observou aumento de denúncias junto aos conselhos tutelares do Recife. Mas admite que pode ser que os casos só estejam fora do campo de visão do poder público. “Quando os professores ou outros profissionais observam algo estranho com a criança, os casos são encaminhados para nós. Mas agora estamos todos dentro de casa, é mais difícil ter informações”, diz ele, destacando ainda que para a vigilância funcionar bem é preciso o envolvimento da comunidade. “Tem que haver denúncia para que haja o atendimento e seja garantida a proteção dessas crianças e adolescentes. Precisamos que a população esteja mais atenta a casos na vizinhança ou família para fazer esse tipo de denúncia”. Ele demonstra ainda preocupação com a futura volta às aulas para crianças a partir de 6 anos. “Temos o desafio de não aglomerar as crianças, educar para evitar alguns contatos. Como vamos fazer essas crianças usarem máscaras? Todos estamos sendo desafiados para garantir essa proteção”, diz.
Os casos de violação dos direitos da criança e do adolescente, assim como os casos de violação de Direitos Humanos, podem ser denunciados por uma ligação gratuita para o “Disque 100”, a qualquer hora do dia e podendo fazer a denúncia de forma anônima. “É importante que a pessoa passe o máximo de informações que tiver sobre a situação da criança, para que o caso seja direcionado ao órgão correto”, diz o gerente de Criança e Adolescência do Recife. “A pessoa também pode ligar diretamente para o conselho tutelar da sua região ou para o CREAS”, completa. Toda cidade tem pelo menos um conselho tutelar, com cidades maiores podendo ter mais de um. O Recife tem oito conselhos tutelares, cujos telefones você encontra aqui. Estes e outros telefones também podem ser encontrados nas páginas da Gerência municipal da Criança e do Adolescente no Facebook e no Instagram.
Eduardo Paysan reforça a necessidade de que a sociedade olhe as crianças como responsabilidade coletiva, não como dever apenas dos pais. “O Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como a Constituição Federal, colocam a criança como prioridade absoluta de todos”, diz ele. Paysan se refere ao Artigo 227 da Constituição, que diz: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O gerente do Recife considera que essa mudança é profunda, passando pela sociedade e instituições. “Requer uma mudança de cultura, para que todo mundo assuma isso, inclusive os poderes Legislativo e Executivo, para que coloquem as crianças e adolescentes como prioridades no seu orçamento”, diz ele, que integra o poder Executivo na capital pernambucana. O advogado menciona ainda o Plano Municipal de Primeira Infância, construído junto com o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (Comdica) e outras secretarias. O plano destaca a importância do enfrentamento às desigualdades sociais para reduzir a vulnerabilidade das crianças. O documento, segundo Paysan, também prioriza iniciativas voltadas para a primeira infância, de 1 a 6 anos.
O gestor reforça que devemos evitar comprar produtos vendidos por crianças ou mesmo dar dinheiro a crianças e adolescentes em situação de mendicância. “Se essas crianças e adolescentes estiverem ganhando um valor que considerem razoável, nossas equipes que trabalham fazendo o diálogo com essas crianças na rua terão dificuldade de encaminhá-las para serviços que atuam na garantia de direitos. Achamos que estamos fazendo o bem, mas indiretamente fortalecemos a cultura do trabalho infantil”, diz ele. Paysan conta que a Prefeitura realiza periodicamente a campanha “Doe no Lugar certo”, para direcionar doações para entidades que já desenvolvem trabalhos com crianças e suas famílias. Há ainda um Fundo Municipal da Criança e do Adolescente, que também pode receber parte dos recursos do Imposto de Renda.
Live
Nesta sexta-feira (12), Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) realiza uma transmissão ao vivo (“live”) de três debates sob o título “Agora mais do que nunca, protejam as crianças e adolescentes do trabalho infantil”. O primeiro debate é sobre racismo e os aspectos do trabalho infantil no Brasil; o segundo debate tem como foco o trabalho infantil no contexto da pandemia do coronavírus; e o terceiro foca nos desafios do combate ao trabalho infantil em meio à crise econômica pós-pandemia. Todo o evento será transmitido no canal do TST no Youtube, a partir das 17h. A campanha de combate ao trabalho infantil ganhou ainda uma música, lançada pelos rappers Drik Barbosa e Emicida. A Assembleia Geral das Organização das Nações Unidas (ONU) definiu 2021 como “Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil”.
Edição: Marcos Barbosa