Pernambuco

ENTREVISTA

“A próxima etapa será de crise social grave”, avalia secretário de Pernambuco

Cloves Benevides, responsável por políticas de prevenção à violência e às drogas, avalia impactos da crise sanitária

Brasil de Fato | Recife (PE) |
População tem sentido os impactos econômicos e sociais da pandemia; Estado e outras organizações iniciaram ações de solidariedade - Marcelo Vidal

 

Após 15 semanas de espraiamento em Pernambuco da pandemia de covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), a população tem sentido os impactos econômicos e sociais da pandemia. As previsões nacionais e internacionais são de recuo na economia e crescimento do desemprego, da vulnerabilidade social e da fome. O cenário liga o alerta para o secretário estadual de Prevenção à Violência e às Drogas, o mineiro Cloves Benevides. Na entrevista, o secretário trata do impacto da pandemia no consumo de drogas, crescimento da violência, além dos efeitos sociais para adolescentes e jovens, além do que o Governo do Estado tem pensado para lidar com o cenário que está por vir.

Benevides começou sua vida política ainda adolescente, em organizações da sociedade civil e no Conselho Municipal de Juventude de sua cidade, Belo Horizonte. Depois passou por cargos de gestão ligados a juventude na prefeitura de Betim (MG); no Governo de Minas Gerais trabalhou com crianças e adolescentes; passou ainda por uma fundação voltada para educação; e desembarcou no Nordeste no estado de Alagoas, onde trabalhou com políticas de socioeducação com adolescentes em conflito com a lei. Em Pernambuco, a partir de 2017, Benevides assumiu a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude. Desde 2019 passou à secretaria que ocupa hoje.

Brasil de Fato: Qual foi o cenário que você encontrou em Pernambuco no que diz respeito às políticas públicas de prevenção a violência e ao abuso de drogas?

Cloves Benevides: Aqui em Pernambuco encontrei um cenário absolutamente diferente de tudo que havia vivido. Um elevado grau de engajamento e atuação da sociedade civil e da academia na construção de políticas públicas. Eu considero isso um diferencial no jeito pernambucano e um aprendizado transformador para todos os envolvidos. O estado tem problemas históricos, como é natural. O país tem um problema fundante de desigualdade e concentração de renda, além de um vazio de incremento financeiro em programas como o Bolsa Família e outras políticas de assistência. Isso sem mencionar que estamos no Nordeste, a região que mais sofre com a concentração de renda e das grandes obras públicas, sempre concentradas no Sul e Sudeste. Mesmo com uma recuperação histórica nas gestões Lula e Dilma, o atraso é histórico de séculos anteriores.

Na política social há grandes desafios. O acolhimento das pessoas que fazem uso problemático de drogas é o desafio mais visível e a mobilização social para a prevenção como a oportunidade por se consolidar. Nesta área temos um programa forte, que é o Atitude, que se aprimora a cada ano. A Fundação de Atendimento Socioeducativo (Funase) num processo de reestruturação.

BdF: Como a pandemia afeta o tecido social e altera este cenário?

CB: A pandemia jogou luz sobre uma série de situações que, em fase de crescimento econômico e sensação de pleno emprego, foram perdendo espaço na agenda do orçamento público brasileiro. Fala-se em 30 milhões de pessoas que não estavam em nenhuma base cadastral mesmo de políticas sociais. Não eram percebidas pelas políticas estruturais.

No orçamento público federal temos 50% para amortização da dívida pública, em torno de 30% para pagamento de previdência (sendo a maior parte do recurso para o pequeno grupo das pessoas que recebem maiores aposentadorias) e resta menos de 30% para todas as outras políticas públicas. Fica cruel para a política de assistência social, disputar com infraestrutura, incentivos para indústrias, além de educação, saúde.

A pandemia jogou luz sobre a necessidade de uma agenda nacional pós-crise de saúde. Eu acredito que a pauta da próxima etapa é uma crise social grave. A descapitalização dos cenários do comércio e da indústria, outras pessoas terão dificuldades. Teremos uma agudização que vai apertar ainda mais aqueles que sequer tiveram seus direitos básicos garantidos ao longo da história.

O “novo normal” que as pessoas têm falado, não pode levar em consideração apenas questões da sociabilidade. Ele deve considerar a partilha social do país, o orçamento, a garantia da renda básica. O Eduardo Suplicy [ex-senador, hoje vereador de São Paulo pelo PT] elogiava programas de distribuição de renda como o Bolsa Família, mas ele sempre destacou a necessidade de um programa de renda estruturada. Tratavam ele como um romântico e o tema nunca entrou no debate com força. Hoje este debate está em todos os lugares. A urgência mostrou que mesmo alguém economicamente ativo nos padrões brasileiros, situação é frágil e não suporta 60 ou 90 dias.

O “novo normal” precisará dar espaço de destaque para políticas sociais, distribuição de renda, qualificação profissional com foco na empregabilidade. Alguns acham que a gente vai ser melhor desse processo. Eu sou um pouco cético. Acho que o ser humano precisa de muito mais autocrítica para engatar uma nova forma de convivência que seja mais plural.


Cloves já atuou na área nos estados de Minas Gerais e Alagoas / SEPREV

BdF: O terceiro setor, junto com movimentos populares, têm promovido campanhas de solidariedade aqui em Pernambuco. Como as secretarias estaduais e o Governo do Estado vem contribuindo com essas ações?

CB: A gente entende que o legado deste triste momento de pandemia é a capacidade articulação do terceiro setor. Nós tivemos duas parcerias episódicas com algumas áreas, estamos avançando numa parceria com a CUFA e a Uber para distribuir máscaras e material de higiene nas comunidades, entendendo que mesmo que com o processo de reabertura, o mais importante é que a população esteja preparada para que não seja submetida a novas ondas e períodos de contaminação extensivos e também com o Coletivo Unidos pela População de Rua e o Mãos Solidárias, para o fortalecimento da segurança alimentar e nutricional das pessoas em situação de rua. Nessa parceria, foram distribuídas 60 mil refeições, em parceria com o SENAC. Também estamos instalando pias comunitárias em algumas comunidades, a partir de parcerias com o Ministério Público e Assembleia Legislativa. Esse é um momento de solidariedade e soma de esforços. Em outras áreas o estado também estabeleceu parcerias como a doação de kits de higiene e fortalecimento da segurança alimentar com várias instituições de acolhimento e de natureza assistencial.

BdF: E quais os reflexos esperados no que diz respeito a violência e drogas?

CB: De maneira superficial, no início muitos imaginavam que essa era equação matemática: no isolamento social tem circulação, então teremos menores taxas de homicídio. O que vimos foi o contrário, crescimento do número de homicídios em algumas regiões, noutras a manutenção dos mesmos patamares, algumas oscilações para menos. Isso me faz pensar que o cenário tende a se agravar devido a pandemia, mas ela também tem sua dinâmica própria. Não é seguro afirmar isso, porque não tenho dados que provem, mas acredito que parte do crescimento se dá porque as dívidas [junto ao tráfico] cresceram e as atividades do tráfico, de cobrança, continuam iguais.

Outro ponto, este já tem mais dados, é o da violência doméstica, que teve um crescimento assustador no país. Estamos o tempo inteiro discutindo que a violência está relacionada ao espaço de convívio dessa mulher. Se antes a violência já acontecia com os dois tendo vidas produtivas fora do lar, com o isolamento os casos de violência crescem e também há uma redução de suas possibilidades de buscar proteção. Já os crimes contra patrimônio, como roubos de celulares ou de lojas de varejo, estes caíram. Mas é preciso aprofundar o debate sobre como as intervenções do Estado nos territórios, na aproximação e no cuidado com as pessoas, precisam ser reforçadas e repensadas para prevenir o homicídio juvenil. Falo do incremento de novas abordagens que não somente as policiais.

BdF: Há projetos do Governo do Estado que estão sendo pensados para atuar neste cenário?

CB: Ano passado aprovamos um projeto, que já deveríamos ter colocado em campo, mas a pandemia atrasou tudo. Vamos ofertar 900 oficinas culturais e esportivas de arte, cultura e lazer nos territórios como medida de prevenção à violência. Dá muito resultado quando se cria estratégias de vinculação com os jovens baseado na sua visão de mundo, no seu entendimento de consumo de cultura, lazer e esporte. E buscar através disso dar novo significado à convivência nos aglomerados urbanos.

Algo que também precisa ser considerado como efeito da pandemia é o repensar da solidariedade. Iniciativas estão nascendo todos os dias. Novos movimentos sociais; novas formas de entender a prática cidadã; algumas empresas fazendo por marketing e outras por reflexão sobre seu lugar na economia; pessoas anônimas construindo correntes de solidariedade. Foram plantadas sementes que podem dar frutos muito interessantes, servindo agora no enfrentamento à pandemia, mas que servirão de referência para novas construções no futuro.

BdF: Qual o impacto social deste momento histórico para os adolescentes e jovens?

CB: Aqui no Brasil sempre tratamos os jovens numa perspectiva futurística, como se chegasse um momento em que todos nós passamos o bastão para outra geração. Não é assim. É uma construção cotidiana e coletiva, que valorize esse jovem como elemento central. O debate coletivo, a construção, o compartilhamento de momentos, isso faz parte da forma de vida do jovem. E esta pandemia causou sim problemas e descompassos na construção desse jovem. Após a pandemia precisaremos estimular esses jovens. Eles estão numa fase de construção de conceitos sobre possibilidades, limites, condutas éticas. Eles precisam de estímulo constante, precisam da vida escolar. Mas ainda nem sabemos quando acabará esse momento de pandemia. Não temos uma vacina. Precisaremos de muita atenção com o autocuidado, para evitar uma segunda onda mais grave, que aprofunde ainda mais a situação econômica. Isso tudo afeta o jovem.

 

Edição: Vanessa Gonzaga