No dia 1º de junho, dia em que se encerrou a quinzena de quarentena rígida em todo o estado, Petrolina possuía 268 casos diagnosticados e 9 mortes. Naquele mesmo dia o prefeito Miguel Coelho (MDB) autorizou a reabertura da economia e vida social da cidade, autorizando a reabertura do comércio, shoppings, igrejas, administração pública, parques e orla fluvial. Nas três semanas seguintes os números de novos contágios aceleraram, mais que duplicando, chegando a 583 casos (um aumento de 117,5%) e 22 mortes.
Os dados referentes ao crescimento semanal também sugerem uma aceleração do ritmo de disseminação do vírus em consequência da reabertura. Importante destacar que os pesquisadores indicam que o ciclo médio do vírus é de 14 dias, de modo que os diagnósticos confirmados refletem o comportamento social de cerca de duas semanas antes, assim como as medidas adotadas esta semana tendem ter suas consequências percebidas na estatística daqui a duas semanas.
A quinzena de quarentena rígida em todo o estado (16 a 31 de maio) refletiu-se numa estabilização do ritmo de espalhamento do vírus em Petrolina, mantendo uma média na casa dos 80 novos casos semanais. A primeira semana de reabertura em Petrolina, do dia 1º ao dia 7 de junho, tende a impactar as estatísticas da semana de 16 a 22 de junho. Esta resultou num aumento repentino de 141 casos na semana (um crescimento de 59,6% em comparação à semana anterior). Após muitas semanas variando entre uma e três mortes semanais, na referida semana foram registrados nove óbitos. Nesta semana (23-28 de junho), ainda não encerrada, o município já contabilizou mais de 100 novos casos, confirmando a tendência de aceleração.
O médico Pedro Carvalho, médico do Hospital da Universidade Federal do Vale do São Francisco (HU-Univasf), lamenta que o prefeito Miguel Coelho (MDB) tenha tomado a decisão de reabertura, algo que ele considera ter sido um “grande erro”. “Que eu saiba não houve nenhuma reunião com pesquisadores, epidemiologistas ou universidades. O que houve foi uma carreata dos empresários de Petrolina pedindo a reabertura, com o prefeito anunciando a medida logo em seguida”, reclama o médico. Empresários locais realizaram carreatas nos dias 22 e 29 de maio, sob a palavra de ordem “Precisamos salvar nossas empresas”. No dia 29, uma sexta-feira, Miguel Coelho confirmou a reabertura para a segunda-feira seguinte, dia 1º.
Pedro Carvalho considera que a decisão foi arriscada “É a minha avaliação como profissional da área, considerando o que já estávamos vivendo em todo o Brasil, com curva crescente no número de casos e óbitos. E mesmo assim reabrimos. Houve uma explosão no número de casos”, pontua o profissional. O médico do Hospital Universitário observa que, “considerando o período de incubação do vírus e o momento do aparecimento de pessoas com sintomas, bate justamente com o contágio a partir da reabertura”. “Provavelmente o que motivou o aumento no número de casos realmente foi a reabertura do comércio, cultos religiosos e as demais atividades. E como Petrolina e Juazeiro (BA) são polos regionais, isso impacta em toda a região”, conclui.
O decreto do prefeito Miguel Coelho (MDB) ainda foi respondido pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE), que moveu uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI). Mas o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) só viria derrubar o decreto após 18 dias de reabertura, o que de pouco adiantou, visto que no dia seguinte à decisão do TJ o Governo do Estado autorizou a reabertura dos equipamentos. O primeiro caso de paciente com covid-19 no sertão pernambucano foi em Petrolina, em 23 de março, uma mulher com histórico de viagem ao exterior.
Na maior parte do Brasil a disseminação do vírus teve início pelos bairros de classe média das capitais e regiões metropolitanas, mas num segundo momento se espalhou pelas periferias dessas regiões metropolitanas e pelos municípios do interior, o que foi chamado de “periferização” e “interiorização” do contágio. Mas segundo o médico não é possível, por enquanto, afirmar as características de circulação do vírus em Petrolina. “Ainda não dá para definir peculiaridades da disseminação do vírus. Mas pode haver características próprias nas consequências do vírus, já que na região temos localidades com dificuldade de acesso, com estradas ruins e pouco transporte, além de municípios muito pequenos que não têm capacidade de fazer uma estabilização do paciente”, avalia Pedro Carvalho. Na região do Vale do São Francisco há a Rede PEBA, que compreende Petrolina, Juazeiro (BA) e mais 51 municípios da Bahia e Pernambuco.
Letalidade e subnotificação
Pesquisadores chineses e ingleses obtiveram que 1% é o índice de letalidade médio da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2). A maioria dos infectados não apresenta sintomas ou apenas sintomas leves, de modo que não precisa se dirigir a um hospital e normalmente não é submetido a testes. Na maior parte dos municípios brasileiros a testagem é voltada exclusivamente para os casos de hospitalização e, como consequência, temos um número de diagnósticos focados nestes casos, tendo assim um índice de letalidade acima do normal e o total de casos abaixo do real.
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Mas aparentemente esta não é uma preocupação para Petrolina. O município tem mantido uma taxa de letalidade na faixa dos 3% desde o início do período pandêmico na cidade, o que indica um número de casos diagnosticados próximo ao real. A título de comparação, o Brasil tem esta taxa próxima a 5%, enquanto em Pernambuco a letalidade está em 8%. Em cidades da região metropolitana do Recife, como Jaboatão dos Guararapes, Cabo de Santo Agostinho e Camaragibe, a letalidade supera os 10%. Na capital está próxima aos 8,5%.
No fim de maio a Prefeitura de Petrolina confirmou a compra de 34 mil testes rápidos para identificar a covid-19. Mas o profissional do Hospital Universitário afirma que o município ainda não tem conseguido fazer uma testagem massiva para entender os caminhos pelos quais o vírus tem se espalhado na cidade. “A testagem continua bem direcionada, sendo feita com profissionais de saúde, pacientes sintomáticos e suas famílias. Não temos ‘folga de testes’. Vi as tabelas comparativas de índice de mortalidade, mas ainda não podemos apontar uma hipótese segura sobre os motivos que levam Petrolina a ter um índice mais baixo”, diz Pedro Carvalho, mencionando ainda que a letalidade segue concentrada em pacientes idosos, com comorbidades (duas ou mais doenças combinadas) e que integram grupos de risco.
Ocupação de leitos
O quadro de poucas mortes em Petrolina também pode indicar uma relativa “folga” na capacidade instalada de leitos na região, evitando as filas de espera por leitos de UTI, situação que costuma elevar o número de óbitos. Mas Pedro Carvalho alerta que não existe essa capacidade ociosa em Petrolina e, mesmo assim, ela foi usada como argumento para a reabertura três semanas antes da autorização estadual. “Usou-se como argumento a existência do hospital de campanha com 100 leitos, mas ele é mais voltado para pacientes com quadros leves e intermediários, que precisam no máximo de suporte de oxigênio, sem necessidade de intervenções mais complexas. Isso foi usado como argumento de que daria segurança para a reabertura”, lamenta o médico. “De fato o hospital de campanha está quase vazio, mas as UTIs já estão colapsadas tanto em Petrolina como nos municípios vizinhos”, diz ele.
Petrolina tem apenas 30 leitos de UTI na rede pública, dez deles tendo sido abertos nesta quarta-feira (24). As UTIs estão distribuídas entre o Hospital Universitário da Univasf (20), no Memorial (5) e no Neurocárdio (5), estes últimos hospitais privados que possuem convênio com o Sistema Único de Saúde (SUS). Os dados divulgados pela prefeitura na última segunda-feira (22, quando haviam apenas 20 leitos públicos no total, 17 estavam ocupados (94%). Os 30 leitos podem receber pacientes de todos os municípios da “Rede PEBA” e 10 são exclusivos para Petrolina.
Pedro Carvalho afirma que dos 10 novos leitos de UTI, três já foram ocupados, totalizando 23 pacientes em 30 leitos (77% de ocupação). “Estes 10 novos leitos podem ser totalmente ocupados já neste fim de semana (27-28). A taxa de ocupação tem sido muito rápida. Em Juazeiro são mais 10 leitos, 100% ocupados; e Araripina, Salgueiro e Remanso (BA) também possuem alguns leitos de UTI, mas em situação similar”, alerta o profissional. Outros cinco pacientes ocupavam leitos exclusivos da rede privada na segunda-feira e há ainda um petrolinense está internado no Hospital Regional de Juazeiro.
Petrolina também dispõe de 120 leitos intermediários, de enfermaria, para pacientes em monitoramento. Destes, 100 ficam no hospital de campanha construído pelo Governo do Estado em parceria com a Prefeitura de Petrolina no Centro Pastoral Monte Carmelo, da Doicese de Petrolina; além de leitos na UPA e no hospital Dom Malan. Até a segunda (22), apenas 15 pacientes usavam estes leitos, uma taxa de ocupação de apenas 12,5%. Outros 8 pacientes estão em leitos privados. “Não temos preocupação com os casos leves, já que o hospital de campanha está com folga. Mas nas UTIs há uma grande tensão. O índice de ocupação nos preocupa demais. Até a abertura desses leitos extras, chegamos a ter 100% de ocupação das UTIs em toda a região”, diz Pedro.
Nesta quinta-feira (25) o Governo de Pernambuco confirmou o envio de 40 respiradores pulmonares e 40 monitores multiparamédicos para o Hospital Universitário da Univasf, que devem chegar a Petrolina na próxima semana. Os equipamentos devem ajudar o HU a abrir 40 novos leitos de UTI. Mas o médico Pedro Carvalho lembra que a abertura não é imediata. “Transformar leitos de enfermaria em UTI é mais complexo, não é só adquirir equipamentos. Também precisa se adequar às normas técnicas de vigilância e contratar mais profissionais”, pontua.
Na cidade sertaneja há internados pacientes de Dormentes, Lagoa Grande, Ipubi, Parnamirim, Petrolândia, Juazeiro (BA) e Campo Alegre de Lourdes (BA). Pedro Carvalho também chama atenção para a importância de os poderes públicos atuarem para lidar com a situação na região. “Estamos a 700 quilômetros do Recife e a 500 km de Salvador (BA), então a transferência de pacientes é um risco clínico e um desafio logístico. Espero que não precisemos chegar esta situação, porque custa muito dinheiro e é muito arriscado para o paciente”, diz ele. O médico também demonstra preocupação com uma iminente falta de medicamentos, como sedativos, bloqueios musculares, para tratar o quantitativo de pacientes por um período de tempo prolongado.
Edição: Vanessa Gonzaga