Até a última quarta-feira (24) estavam confirmados 20.165 casos de covid-19 na capital pernambucana. Destes infectados, cerca de 67,6% são pessoas negras, identificadas como pretas (5,4%) ou pardas (62,5%). Os dados detalhados são fornecidos pelo Centro de Informações Estratégicas e Vigilância em Saúde (Cievs) do Recife e correspondem à metade (49,1%) mais recente dos casos diagnosticados na capital pernambucana, quando a pandemia já estava num momento de penetração nas periferias.
Os números divulgados pelo Cievs/Prefeitura do Recife na última quinta-feira (25), referentes ao acumulado do início da pandemia até a quarta-feira (24), apontam 20.165 diagnósticos positivos de covid-19 entre os residentes da capital pernambucana, sendo 12.541 casos foram leves (62,2%) e 7.624 (37,8%) foram casos graves (SRAG). Do total de diagnosticados, 16.366 (81,1%) já estão recuperados, 1.743 (8,6%) resultaram em morte e outros 2.056 (10,2%) seguem em tratamento, hospitalizados ou em casa. Aproximadamente 1,2% de toda a população do Recife já foi diagnosticada com coronavírus. É a maior taxa em Pernambuco.
O detalhamento de cor/raça – assim como de faixa etária – só passou a ser coletado a partir da segunda quinzena de maio, após aprovação, na Câmara do Recife, de um projeto de lei do vereador Ivan Moraes (PSOL) sobre o tema. Em pronunciamento na última segunda-feira (22) o vereador comparou a propagação do vírus em diferentes bairros no intervalo entre abril e junho, concluindo que nos bairros de padrão econômico mais elevado o ritmo de crescimento é bem menor. “Entre os bairros mais pobres, com renda per capita abaixo de R$350, o número de casos foi multiplicado em cinquenta vezes num intervalo de dois meses e meio”, disse o vereador. “Não é hora de reabrir. Não há normalidade para isso”.
Mais de 10.200 casos ficaram sem esses dados, mas os 9.898 casos mais recentes (49,1% do total) de infecções pelo Sars-CoV-2 no Recife possuem o detalhamento. Os dados coletados informam sobre o quadro mais atual da pandemia, de espalhamento pelas periferias da capital pernambucana.
Entre os 9.898 casos detalhados, 62,2% (6.157 casos) foram em pessoas que se identificam como pardas e 5,4% (534 casos) em pessoas que se identificam como pretas, totalizando 67,6% (6.691 casos) em pessoas negras. Outros 26,7% (2.648 casos) são de pessoas brancas, 5,5% (549 casos) em pessoas que se identificam como amarelas e 0,1% (14 casos) indígenas. O agente comunitário de saúde Filipe Araújo, que atua no bairro do Vasco da Gama, periferia na zona norte do Recife, resume que os números são resultado da falta de acesso a direitos básicos como acesso a água encanada e sistema de esgoto por parte da população periférica, que é majoritariamente negra. “Aqui, grande parte da população vive em situação de vulnerabilidade social e econômica. Não é fácil viver num bairro periférico num momento que pede isolamento social”, diz ele, mencionando ainda que o surgimento do programa de agentes comunitários de saúde foi uma forma de responder às elevadas taxas de mortalidade infantil nas periferias.
Filipe destaca alguns fatores que favorecem a disseminação mais rápida do vírus nos bairros da periferia. Um dos fatores é o transporte público, que mesmo no período de isolamento social mais rígido, quando menos gente circulava e havia uma rara oportunidade de manter uma distância segura dentro dos ônibus, isso não se cumpriu. “As empresas acabaram reduzindo o número de veículos em circulação e manteve a aglomeração”, lamenta.
O trabalho de Filipe Araújo como agente comunitário envolve visitas periódicas às residências do bairro. Ele alerta que a maior parte das casas não possui abastecimento diário de água e algumas localidades do bairro chegam a passar mais de um mês sem receber água encanada. “Como vai se higienizar desse jeito?”, questiona. Ele afirma ainda que as casas da população periférica e negra não é comum haver mais de quatro cômodos, um dos quais o banheiro. “Muitas casas têm até menos de quatro cômodos. Se você tem uma casa maior ou uma família pequena, até consegue manter alguma distância. Mas o normal por aqui são famílias com 5 ou 6 pessoas numa mesma casa. Então as pessoas não conseguem passar meses nessa situação”, avalia.
O agente considera que a recomendação para evitar aglomerações a que encontra mais dificuldade de ser seguida pela população da periferia, por motivações econômicas, mas também por fatores sociais e culturais da periferia. “É na parada de ônibus, é na conversa na calçada, é na hora de fazer compras”, diz ele, avaliando que muitas vezes isso ocorre por desatenção ou falta de vontade da própria população. “E também é muito forte a cultura da ‘festinha’. A população trabalha a semana inteira e no fim de semana os amigos se reúnem para tomar uma cerveja. Como os bares estão fechados, as pessoas se reúnem umas nas casas das outras. Essa circulação de casa em casa torna a população suscetível a contaminação”, pontua, mencionando ainda o caso de um vizinho que é também profissional de saúde que perdeu um membro da família por covid-19 após uma dessas festas. Além destes há o fator, também influenciado pelo quadro econômico, de fazer compras quase diariamente. “Tem a feira do mês, mas quase todos os dias as donas de casa saem ou mandam os jovens para comprar verdura, frutas, pão. Isso mantém o povo nas ruas, circulando”, diz Filipe.
Apesar de considerar que o poder público não tem força coercitiva suficiente para fiscalizar todas as localidades e nem recursos financeiros para realocar essa população para moradias mais espaçosas num espaço curto de tempo, Filipe opina que “precisava ter adotado ao menos um discurso mais rígido para reduzir a circulação e aglomerações”.
Filipe lembra ainda que no início da pandemia, parte da população das periferias tratou a doença com desdém, mas o comportamento mudou e há mais cuidados que antes, só não foi possível sustentar o isolamento social, pelos motivos já mencionados. “Era comum ouvir da população que a covid-19 era ‘doença de rico’ e muitos também caíram na conversa de Bolsonaro de que era ‘só uma gripezinha’. Na periferia as pessoas só começaram a ser mais cuidadosas quando começaram a morrer pessoas próximas, infelizmente”, avalia.
Segundo Filipe, no bairro em que mora e trabalha, o Vasco da Gama, as pessoas levaram um susto e passaram a encarar a pandemia com seriedade quando circularam fotos e vídeos de socorristas paramentados buscando uma moradora do bairro com suspeita de covid-19. “Saiu nos jornais e na TV. Nos dias seguintes as pessoas ficaram mais em casa, mas aos poucos foram voltando para a rua”. Ele observa que, apesar da falta de fiscalização do poder público, os estabelecimentos comerciais têm tomado alguns cuidados, como o fornecimento de álcool em gel.
População negra tem mais casos graves
As estatísticas apresentadas pelo Cievs também apontam que enquanto os negros e negras correspondem a 67,6% dos casos mais recentes, ao detalhar os casos leves e graves percebe-se que é mais comum a evolução para casos graves na população negra. Entre os 7.707 casos leves detalhados, os pretos e pardos respondem por 5.061 (65,7%) dos casos. Mas entre os 2.191 casos graves (SRAG) mais recentes no Recife, 1.630 (74,2%) são em pessoas pretas ou pardas.
Na avaliação do profissional de saúde, o agravamento de doenças nesta população é também resultante do quadro de insegurança alimentar e nutricional. “Em média quem mora em bairro periférico tem alimentação de pior qualidade e é menos nutrido que a população de classe média. Isso reduz a nossa imunidade”, pontua Filipe Araújo. Novamente mencionando o direito a água, ele destaca que “aqui também vivemos enfrentando outros problemas simultaneamente, como os vírus da dengue, zika e o da chikungunya, todos consequências da falta de saneamento”.
Ele considera que os erros principais do poder público durante a pandemia foram não ter tentado produzir e distribuir máscaras para a população desde o início e não ter investido em “rastrear o vírus” a partir da testagem em massa. “As máscaras até que a população passou a adotar, com todos os erros e precariedades. Mas precisava ter buscado a compra e realização massiva de testes desde o início, ainda que se gastasse muito”, opina. “Só com a testagem em massa você consegue ter um ‘raio-x’ da realidade do bairro ou da cidade. É o primeiro passo para vencermos essa batalha. Sem sabermos quem está infectado, essas pessoas sintomáticas ou assintomáticas podem estar circulando e transmitindo o vírus para outras pessoas e não sabemos”.
Edição: Vanessa Gonzaga