Estamos diante de uma elite que não tem capacidade de construir um projeto original de nação
Ao pensar na atual situação das periferias diante a crise sanitária da Covid-19 inúmeros elementos podem ser levantados, trazendo a possibilidade de variadas reflexões. Aqui neste texto me proponho a destacar apenas dois deles: o processo de colonização no Brasil e a lógica colonial que persiste até os dias atuais; e a característica genocida da elite brasileira.
Beatriz Nascimento se questiona sobre o fato da população negra no Brasil nunca ser considerada como fazendo parte da história deste país, ou melhor, dos acontecimentos importantes vividos por aqui. A historiadora se debruça então a pesquisar acerca da posição da negra e do negro na formação social brasileira e se depara com a constatação de que a maioria dos estudos reforça uma cristalização da posição desta população na condição de escravizados. Um outro elemento é a tentativa de apagamento da condição de sujeito que viveu em liberdade, seja no tempo anterior ao tráfico negreiro e a desumanizante condição de escravidão, seja na subversão desta condição a partir das fugas, estratégias criativas de existência, na formação de quilombos como forma societária de organização ou ainda no tempo em que a população negra se fez libertar.
Assim, aspectos indicados por Sueli Carneiro como a negação da mulher negra na formação cultural; a erotização da desigualdade entre homens e mulheres e a romantização da violência sexual perpetrada pelos colonizadores brancos conjugados à violência e desumanização que pessoas escravizadas foram submetidas são características do período colonial que fundaram uma profunda segmentação e desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira, no que se refere às relações de classe, raça e gênero que não apenas a estrutura como se arrasta até os dias atuais.
O vassalismo da elite brasileira que está no poder às ordens das elites dos países capitalistas centrais além de escancarar a sua debilidade em construir um projeto de nação para o Brasil, deixa a olhos nus a sua insistência em perpetuar a estrutural social segmentada e desigual e conservar a lógica colonial de desumanização da população negra. A política de genocídio executada pela elite brasileira se expressa no aniquilamento físico como também pelo apagamento da memória, do pensamento, da intelectualidade produzida por negras e negros.
Os mitos construídos pelas elites dominantes, como diz Florestan Fernandes, muito revelam dos aspectos que se propunham a esconder. Assim, aquele do assujeitamento da população escravizada como tendo aceitado tal condição sem se contrapor à força dos colonizadores tenta encobrir o que Beatriz Nascimento afirmou: “o escravo negro, assim como o negro atual, não só participou da formação social do Brasil com seu trabalho, com seu sofrimento, participou também da mesa, da cama, do pensamento e das lutas políticas do colonizador e seus descendentes”.
Estes quase quatro séculos foram marcados por incontáveis revoltas do povo negro, formação de quilombos e inumeráveis estratégias de resistência. Além das revoltas e resistência do povo negro, a exigência dos países de capitalismo central pela produção fabril como maior possibilidade de lucro conformou a formalização da abolição do regime de escravidão e a importação de milhões de trabalhadores da Europa para assumir o trabalho assalariado no Brasil. A elite brasileira instaurada no poder assume o posicionamento de que o trabalho formalizado não deveria ser lugar para negra ou negro. Além de nunca ter ousado uma tentativa de reparação histórica, se caracteriza por deixar a população negra jogada à própria sorte.
Altera-se o modo de produção, mas a posição enquanto país de capitalismo dependente e subordinado aos interesses dos países de capitalismo central permanece. Segue a galope se desenvolvendo desigual e combinadamente, conjugando aspectos os mais arcaicos a tentativas mal sucedidas de imitação modernizante, seja na relação do Brasil com países centrais, seja entre as próprias regiões brasileiras.
Os elementos de autoritarismo da elite brasileira e submissão ao capital estrangeiro se reafirmam no golpe e anos de ditadura militar, aprofundando a desigualdade social, violência, agravando as condições de vida do povo brasileiro. A esta altura, as periferias vão ganhando contornos semelhantes ao que conhecemos hoje, pois o processo de urbanização acontece de modo a colocar à margem do território das grandes cidades as massas de trabalhadoras e trabalhadores, em sua maioria negras e negros. Mais uma vez a elite brasileira não conclui a realização de reformas básicas, que pudessem estruturar minimamente as condições de vida desta população.
A conservação da lógica colonial que estrutura a sociedade brasileira supõe que quem vive à margem do centro econômico capitalista não precisa de condições tais como moradia, saneamento, água, escolarização, saúde. Constrói-se assim periferias que se estruturam de forma aglomerada, em que o desemprego continua sendo estruturante e que a única presença do Estado brasileiro que funciona segue sendo o plano de genocídio do povo negro.
O contexto da maior crise pandêmica mundial no último século e a inércia da classe dominante que governa este país acerca de medidas que pudessem salvar a vida do povo brasileiro pôs à mostra que continuamos diante de uma elite que segue débil, ignorante, covarde, cruel, submissa, que não tem capacidade de construir um projeto original de nação e tampouco tem a acrescentar no que se refere ao aspecto civilizatório à humanidade.
Acontece que nós também temos planos. Planos de libertação. E eles insistem em seguir guiando os nossos passos. Seguimos acreditando e forjando os nossos valores a partir da sabedoria ancestral, da intelectualidade forjada do lado de cá, povo brasileiro, da riqueza de nossa cultura, da nossa capacidade em solidarizar com o que dói e falta ao outro, a nossa coragem em não sucumbir. Contra o apagamento do nosso povo e de nossa história, continua de fundamental importância o insistente resgate de nossa memória, importante que relembremos uns aos outros as nossas histórias, como chegamos até aqui. Como disse Lélia Gonzalez, a memória como esse lugar de inscrições que restitui histórias que não foram escritas, que emerge, que tem astúcia e jogo de cintura.
Edição: Vanessa Gonzaga