Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato Pernambuco, o médico e cientista Miguel Nicolelis, da coordenação da Comitê Científico do Consórcio Nordeste, aponta que “ainda não tem como contar vitória ou achar que a batalha está ganha” no enfrentamento à Covid-19 nos estados do Nordeste. O nono boletim lançado pelo comitê aponta um “efeito bumerangue”: O crescimento de casos na capital seguiu em direção ao interior, e agora há um aumento repentino de casos no interior que retorna para as capitais do estados, onde há mais leitos e mais estrutura para pacientes graves vindos de outras cidades. Confira a entrevista:
Lucila Bezerra: O Governo do Estado de Pernambuco e alguns estudos da PUC São Paulo apontam que Pernambuco já pode ter passado pelo pico da Covid-19, mas a gente vem observando que existe um aumento no número de casos no geral. Ao que se deve esse aumento?
Miguel Nicolelis: Bom, eu acho que o primeiro fator é a interiorização do vírus pela malha rodoviária de Pernambuco, que permitiu que tivesse um espalhamento da Grande Recife até as áreas mais do interior. A gente tem várias evidências sugerindo que isso ocorreu ao longo dos últimos meses, por exemplo, Caruaru que provavelmente é um dos grandes alvos do tráfego rodoviário da Grande Recife, é um dos lugares onde a gente observou um crescimento bem grande do número de casos, mas também ao longo da BR-101 em direção à Paraíba e Alagoas.
E aí a gente já começa ver nas últimas semanas casos aparecendo no centro do estado e no extremo oeste: Serra Talhada; Petrolina; houve um espalhamento bem grande da região também de Águas Belas; Garanhuns; Palmares, perto de Alagoas; Água Preta. A gente começou a ver essa interiorização e agora a possibilidade de os casos que foram pro interior, à medida em que casos mais graves se desenvolvem, que eles possam voltar para a Grande Recife em busca de serviços médicos mais especializados e leitos de UTI, que é o chamado "efeito bumerangue" que nós criamos.
Lucila Bezerra: Também já está começando a haver uma reabertura econômica e em cada parte do estado está acontecendo em um nível diferente. É possível que a gente chegue a um novo pico da doença?
Nicolelis: Sem dúvida. A Universidade de Oxford soltou um relatório semana passada mostrando que todas as aberturas do Brasil foram executadas ainda fora dos parâmetros que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda, então no momento em que isso ocorre, independente do grau da abertura você se expõe ao risco de ter novos casos se desenvolvendo e novos picos aparecendo em diferentes regiões do estado.
O Recife colheu bons resultados do lockdown que fez da área metropolitana, da Grande Recife mas, evidentemente, ainda não tem como contar vitória ou achar que a batalha está ganha porque a gente vê com essa interiorização o aumento de riscos mesmo para a área metropolitana. Mesmo em regiões que a gente não fala muito, mas Jaboatão dos Guararapes, por exemplo, eu olho no nosso mapa e vejo um grande número de casos e óbitos e realmente quando você olha na curva, você vê o crescimento que ficou mais lento graças ao lockdown, mas ainda ta crescendo.
Lucila Bezerra: Quais são as recomendações que você indica pra evitar que o estado atinja um novo pico?
Nicolelis: São várias: primeiro, como vários membros do nosso comitê de Pernambuco preconizam, o estado precisa realizar estudos, inquéritos epidemiológicos populacionais pra ter uma noção exata de qual a porcentagem da população que foi exposta ao vírus e é preciso criar um programa, que eu acredito que a Fiocruz de Recife teria toda condição de executar porque tem todos os técnicos de nível internacional, toda a infraestrutura, todo o conhecimento técnico para fazer vários desses inquéritos a cada vinte, trinta dias, que é o preconizado.
É preciso ter um cuidado também com o espalhamento do vírus pelas rodovias. Barreiras sanitárias, controle do tráfego, testagem das pessoas que vão pro interior, das pessoas que voltam do interior é muito importante. Quando houver uma sobrecarga do sistema hospitalar,uma curva de casos ascendente muito séria e com um número de óbitos crescente como a gente vê em Caruaru, por exemplo, é preciso se estabelecer o isolamento social mais rígido, conhecido como lockdown, e ir de encontro ao vírus, nas casas das pessoas, nos locais de trabalho para quebrar a taxa de transmissão. É a única maneira conhecida de você realmente diminuir a reprodução da doença.
O nosso comitê sugeriu a criação do que a gente chamou de "Brigadas Emergenciais de Saúde" que são grupos de agentes da saúde da família, médicos, enfermeiras que vão casa à casa de encontro às pessoas para ver quem está doente, quem precisa ser isolado, quem precisa ser levado ao hospital ou a uma unidade primária de atendimento. Então, é uma estratégia casada por vários componentes que precisa ser posta em prática simultaneamente para a gente quebrar esse ciclo vicioso da expansão do coronavírus.
Lucila Bezerra: Como você observa o desempenho do estado de Pernambuco nessas ações de combate ao coronavírus que vem sendo tomadas desde o mês de março deste ano?
Nicolelis: Eu acho que o governo de Pernambuco tá tentando fazer o que é possível dentro das limitações, eu só acho importante que essas medidas todas que o comitê sugeriu, elas possam ser postas em prática, principalmente o controle das estradas, as brigadas, o uso de barreiras sanitárias e também a preocupação com a interiorização e o efeito bumerangue, porque eu acho que esses são fatores,principalmente o efeito bumerangue, ele não tinha sido antecipado antes, ele foi algo que a gente conseguiu medir e descobrir nas últimas semanas e ele traz uma variável nova que é esse fluxo de pacientes do interior em busca de socorro médico na capital, em Recife, que pode ser rapidamente um aumento da demanda de leitos de enfermaria e de UTI.
São basicamente essas as recomendações e também as fronteiras dos estados porque em certo momento talvez seja importante fazer um controle mais rígido dos casos que saem ou entram por causa do fluxo muito contínuo. A Região Metropolitana de Recife tem fluxos rodoviários dos maiores na região Nordeste por causa do Aeroporto dos Guararapes, por causa de Suape, a conexão com João Pessoa tem um trânsito muito grande e existe um transborde de pessoas infectadas tanto para o lado de Alagoas, como para o lado de João Pessoa e vice versa. É preciso haver uma ação contínua e a ênfase na abertura econômica ser graduada, medida, não só pelos indicadores econômicos, que é o clássico que todo mundo está fazendo, mas sim por agentes epidemiológicos, deveria ser dada prioridade total nesse momento.
Lucila Bezerra: Em relação a região Nordeste como um todo, como você tem observado o desempenho do Nordeste através do consórcio em relação a outras regiões?
Nicolelis: Eu acho que a região Nordeste foi a primeira a criar um comitê científico no Brasil. Empoderar esse comitê, dar autonomia e liberdade pra esse comitê se manifestar e oferecer suas sugestões e recomendações sem nenhum tipo de interferência. Nós temos feito isso, nós temos exemplo de grandes sucessos como o Piauí que implementou basicamente todas as sugestões feitas pelo comitê e ta nesse momento com os melhores índices da pandemia no Nordeste; nós temos o Maranhão que realizou várias das ações sugeridas; a própria Paraíba que fez um isolamento rígido da grande João Pessoa e conversa conosco continuamente; nós temos contato direto com o governador da Bahia, conversei com ele semana passada longamente sobre a situação; temos representantes de todos estados; nesse momento apenas o Rio Grande do Norte não tem representante.
Nós vemos claramente que os estados que estão seguindo recomendações científicas, sendo chanceladas pelo comitê estão tendo resultados muito bons. A gente sempre fica torcendo pra que todos os gestores dêem relevância e importância e ouçam essas recomendações mas, nós só fazemos recomendações, só fazemos sugestões, nós não temos nenhum poder operacional e não tomamos nenhum tipo de decisão. Nós só analisamos o que está acontecendo e qual é o impacto dessas decisões no avanço da pandemia.
Lucila Bezerra: Como é o trabalho do Comitê Científico em uma situação como essa de pandemia?
Nicolelis: Basicamente o comitê está se reunindo virtualmente, nós temos representantes dos estados, nós temos 9 sub-comitês formados por cientistas de todo o Brasil, não só do Nordeste e nós temos também uma plataforma virtual de colaboração de cientistas de toda a sorte, de todas as especialidades com mais de 2 mil colaboradores, é uma das maiores, se não a maior do Brasil nesse momento.
Nós coletamos dados, modelos, informações, fazemos análises, fazemos gráficos de toda sorte e oferecemos esse material aos governadores de cada estado e também publicamos os nossos boletins periodicamente para informar a sociedade como um todo do estado da pandemia no Nordeste. É um trabalho voluntário Todos nós somos voluntários, ninguém recebe nada e todos basicamente colaboram tentando oferecer as melhores práticas científicas, as melhores soluções encontradas no mundo pra gente implementá-las no Nordeste.
Lucila Bezerra: Observando o papel que vem tendo esse comitê e os resultados que vêm sendo alcançados a partir das ações tomadas com base nas recomendações, como você entende a importância da pesquisa científica no Brasil e de valorizar mais esse tipo de trabalho?
Nicolelis: Eu acho que claramente a pandemia trouxe à tona a necessidade da ciência ser levada mais a sério pelos governos, pelos gestores e pelas sociedades dos países. Em todos os países onde a ciência foi posta em primeiro plano, ela ajudou demais a combaterem a pandemia. Por exemplo, na Alemanha, onde os institutos de pesquisa foram chamados a ajudar o governo alemão e desempenharam um papel central; na Coréia do Sul da mesma forma; a própria China...
A gente vê aqui no Brasil finalmente a sociedade brasileira começando a acordar porque é importante apoiar a ciência, financiar projetos de pesquisa em todo o país, apoiar as universidades federais onde mais de 90% das pesquisas científicas do Brasil são feitas. Nesse sentido, eu acho que a ciência está correspondendo, oferecendo alternativas, abordagens novas, práticas de sucesso e também contribuindo para várias ações, inclusive a possibilidade de desenvolver uma vacina que melhore essa situação a nível mundial.
Então eu acho que a ciência e, em particular, o nosso comitê ta tendo uma repercussão muito grande no Brasil, ta sendo ouvido pela sociedade, infelizmente o Governo Federal não tem essa boa prática de levar em conta os conselhos e a experiência dos cientistas mas na região Nordeste nós temos ouvidos que nos ouvem e realizam ações que são baseadas nas recomendações do comitê e na prática da ciência de alto nível.
Transcrição: Iyalê Tahyrine
Edição: Vanessa Gonzaga