Grandes unidades de abate e processamento de carne de gado, de porcos e de aves são apontadas como focos de propagação do vírus Sars-CoV-2 em países como França, Estados Unidos e Brasil - não por coincidência, alguns dos maiores epicentros mundiais da pandemia.
“Ao fim e ao cabo, a crise do coronavírus escancara os limites do capitalismo neoliberal como modelo de gestão política e econômica das sociedades contemporâneas”, aponta o pesquisador e coordenador executivo da AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia, Paulo Petersen, que atualmente compõe a coordenação executiva do projeto “Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia”, uma iniciativa de mapeamento e sistematização das experiências de abastecimento alimentar pelo Brasil.
Ao abordar a centralidade da conexão natureza-alimento-saúde sob a perspectiva da agroecologia, Paulo aponta o fortalecimento da agricultura familiar camponesa e a democratização dos sistemas agroalimentares como medidas necessárias à garantia da saúde e da soberania e segurança alimentar e nutricional da população brasileira. Confira a entrevista.
Priscila Viana: Uma série de pesquisadoras/es e especialistas têm apontado para uma relação direta entre o surgimento de vírus causadores de epidemias e pandemias e o agronegócio. De que maneira essa relação pode ser analisada?
Paulo Petersen: Em tempos de pandemia, cabe uma discussão específica acerca do controle exercido pelas megacorporações sobre os sistemas alimentares e seus impactos sobre a saúde pública, compreendendo a saúde como um direito a ser promovido pelo Estado e a economia como a administração das riquezas sociais para a promoção do bem comum.
Segundo uma comissão científica organizada pela revista médica The Lancet, a globalização uniformizante dos padrões de produção e consumo alimentar é responsável pela criação e a interação sinérgica de três fenômenos agravantes de problemas de saúde em todo o mundo: a obesidade, a desnutrição e as mudanças climáticas. Como os três possuem causas e efeitos em comum e alimentam-se reciprocamente, a comissão identificou o processo como um fenômeno singular, que designou de sindemia global.
A responsabilidade da sindemia, segundo a comissão, é inequívoca: de um lado, a produção agropecuária realizada em grandes escalas, baseada no uso intensivo de fatores artificiais, tais como agroquímicos, hormônios e antibióticos; de outro, o consumo de alimentos ultraprocessados; para sustentar energeticamente essa cadeia de irracionalidade ecológica e sanitária, o uso intensivo de combustíveis fósseis.
Além desses efeitos desestabilizadores da dinâmica ecológica planetária, numerosos especialistas vêm apontando a relação direta entre surgimento de pandemias e os mega confinamentos nos criatórios industriais do agronegócio. Ao fim e ao cabo, a crise do coronavírus escancara os limites do capitalismo neoliberal como modelo de gestão política e econômica das sociedades contemporâneas.
PV: Em que medida a pandemia do coronavírus revela as contradições apontadas pelo movimento agroecológico ao capitalismo neoliberal?
Petersen: O que a conjuntura aponta é para a urgência de medidas emergenciais de caráter estruturante que simultaneamente apontem para transformações estruturais em um sistema à beira do colapso. No entanto, vale ressaltar que, destoando das medidas tomadas em meio à pandemia por lideranças políticas de outros países, as forças reacionárias que controlam o poder de Estado no Brasil se aproveitam da situação para tentar levar à frente sua agenda regressiva e fortalecer os interesses econômicos dos impérios alimentares.
Ou seja, para gastar bilhões de reais que deveriam ser investidos na materialização da soberania e da segurança alimentar da população para o consumo de comida de péssima qualidade que compromete a saúde individual no exato momento em que o sistema imunológico das pessoas precisa ser fortalecido.
PV: Se a economia deve ser compreendida como ‘a administração das riquezas sociais para a promoção do bem comum’, e a saúde, como ‘um direito a ser promovido pelo Estado’, de que maneira a gestão pública deve garantir a soberania e a segurança alimentar e nutricional atuando sob a perspectiva da saúde e da economia?
Petersen: Com a crescente disseminação do coronavírus, as feiras livres foram canceladas, o que implicou na fragilização do abastecimento alimentar da população, que ficou refém dos alimentos industrializados das grandes redes de supermercado. As escolas também suspenderam suas aulas, deixando as/os estudantes da rede pública sem a merenda. São situações que revelam impactos graves, não só para a agricultura familiar, que produz alimentos saudáveis, mas também às famílias que consomem, seja do campo, seja da cidade.
Políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) cumprem papel estratégico nesse sentido, pois são iniciativas que propõem a aquisição de alimentos da agricultura familiar, tanto para o abastecimento de populações em situação de insegurança alimentar, quanto para a alimentação escolar das/os estudantes da rede pública, respectivamente..
É importantíssima a aprovação do PL 735/2020, que garante o pagamento de auxílio emergencial para agricultoras/es que não foram contemplados com o recurso - R$ 3 mil divididos em cinco parcelas de R$ 600,00 para agricultores e R$ 6 mil divididos em cinco parcelas de R$ 1,2 mil para as agricultoras chefes de família.
É nesse sentido que defendemos a atuação do Estado, pois assim se promove o fomento econômico, a proteção social, a conservação ambiental e a revalorização cultural.
PV: Que benefícios o incentivo estatal à agricultura familiar pode trazer à sociedade?
Petersen: Significa gerar postos de trabalho dignificantes dedicados à produção de comida em quantidade e diversidade para o abastecimento do conjunto da população com alimentação saudável; Significa reduzir drasticamente as emissões de gases de efeito estufa e significa, finalmente, desarticular o poder de controle de grandes corporações do agronegócio sobre os circuitos que encadeiam globalmente a produção, o processamento, a distribuição e o consumo de alimentos.
É diante desse contexto que a agricultura familiar camponesa, em toda a sua diversidade cultural e identitária, irrompe como força sociocultural e política portadora de promessas de futuro na reconstrução de sistemas alimentares saudáveis, economicamente dinâmicos, tecnicamente eficientes e ecologicamente sustentáveis. É por isso que a agroecologia deve ser socialmente assumida e defendida como um enfoque para a transformação dos padrões dominantes de produção, beneficiamento, distribuição e consumo de alimentos.
PV: Quais os caminhos apontados pela agroecologia como horizontes para a superação desses padrões dominantes de produção, beneficiamento, distribuição e consumo de alimentos?
Petersen: É através da agroecologia que a agricultura familiar camponesa, indígena e os povos e comunidades tradicionais organizam seu trabalho para a produção diversificada de alimentos e outros produtos agrícolas, por meio de processos cooperativos desenvolvidos em estreita interação com as dinâmicas ecológicas e socioculturais dos territórios nos quais se enraízam.
Ao mesmo tempo que contribui para democratizar os sistemas agroalimentares, ela depende de um ambiente institucional democrático para que suas práticas floresçam e se desenvolvam, ou seja, do aprofundamento de uma democracia econômica assegurada por um Estado garantidor de direitos e assentada em valores da solidariedade e da cooperação em defesa dos bens comuns e da sustentabilidade ecológica
É a partir da urgência de reconhecimento social dessas práticas e apoio decisivo às políticas públicas e ao controle social que nasce a Ação Coletiva Comida de Verdade: aprendizagem em tempos de pandemia, um projeto de abrangência nacional tecido por meio da articulação de treze organizações comprometidas com a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e que tem como intuito um processo inédito de mapeamento e sistematização das experiências de abastecimento alimentar protagonizadas por movimentos sociais do campo e da cidade, organizações populares e diversos coletivos (formais e informais) que têm garantido que a comida de verdade chegue à população. A Ação Coletiva será um passo fundamental para compreender como essas experiências podem apontar caminhos para a construção e o fortalecimento de sistemas agroalimentares equitativos e sustentáveis.
Edição: Vanessa Gonzaga