Nossa desobediência é nossa forma de rejeitar a realidade do sistema patriarcal
O conceito de desobediência civil foi definido por Henry David Thoreau, estadunidense que se recusou a pagar impostos devidos em razão da guerra contra o México, por rejeitar o financiamento do conflito que, à época, servia para reforçar financeira e politicamente os Estados do Sul dos Estados Unidos, então defensores do escravismo.
Repetido, aprofundado e aperfeiçoado por diversos líderes sociais e políticos, entre eles, Martin Luther King, Malcolm X, Rosa Parks e Gandhi, o conceito de desobediência civil traz em seu íntimo uma noção de não passividade e não violência, ancorada no direito de resistência e de existência subjetiva e coletiva de todas e todos. Trata-se, também, de uma forma de luta que garante a manutenção das forças populares que são, cotidianamente, massacradas por um governo racista, machista, capitalista e heteronormativo.
No Brasil essa forma de rebeldia política é protegida pela Lei 13.260 (lei antiterrorismo) que, em seu parágrafo segundo, exclui do conceito de terrorismo as condutas individuais e coletivas de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais.
Em outras palavras, a lei reconhece como legítimos os atos públicos de denunciar violações e opor-se contra situações injustas, desde que não se cometa atos violentos. Os atos de violência seriam os de enfrentamento direto com uso de força (de armas, fogo, explosivos etc.) Essas condutas, por estarem previstas no Código Penal, são ações tidas como criminosas, salvaguardadas aqueles casos em que se age por legítima defesa, ou seja, defendendo a vida e a integridade física própria e de outra pessoa.
A desobediência civil não necessariamente impõe-se em relação a alguma lei injusta, mas pode também operar contra ações e omissões que inibam, reduzam, retirem ou impeçam o exercício da existência e resistência coletiva e individual. Trata-se de um mecanismo constitucional de exercício da liberdade e, sobretudo, da concretização da soberania popular, já que todo poder emana do povo que deve participar das tomadas de decisão a respeito do seu próprio destino.
Dito dessa maneira, e quando analisamos a sociedade em que vivemos, isso tudo parece ser utópico. Mesmo que escrito em nossa própria Constituição da República, mesmo que nossa Constituição tenha apenas 32 anos de vida e deveria, por isso, ser fresca em nossa memória e nossas ações. Como falar sobre desobediência civil em uma sociedade na qual o simples ato de existir já é um tipo de desobediência? Desobedientemente existimos. Desobedientemente, como diz Conceição Evaristo, combinamos de não morrer.
A nossa teimosia é nossa forma de desobediência civil. A nossa ousadia de aspirar um mundo melhor, de se inspirar em nossos exemplos e de se recusar a subir ou seguir em um trem que leva em seus vagões a poluição, a morte e a opressão.
É, como diz Ochy Curiel, ir a pé, pelas calçadas, pelas margens, formar um cordão humano tão largo e tão cumprido que possa, mais na frente, desmontar os trilhos e fazer sucumbir a lógica opressora, repressora e exploratório de quem, hoje, julga-se no poder. Ao criticar a lógica do poderoso, bell hooks recusa a definição do poder como a capacidade de controlar e oprimir. Afirma ser possível transformar o mundo através da mudança de perspectiva sobre o que é o poder, colocando-o não como fonte de destruição e subjugação do outro, mas como ato de resistência e de força individual e coletiva.
Em agosto, no mês da visibilidade lésbica, precisamos defender os afetos que vão de encontro à lógica patriarcal e heteronormativa de relações amorosas e sociais. A (r)existência, seja coletiva, seja individual, do amor entre mulheres é uma das ferramentas para comprovar-se que a realidade imposta pelos opressores não é a forma de organização social capaz de acolher e respeitar a liberdade, a subjetividade e as relações sociais de todas e de todos.
Podemos amar. E o podemos, aqui, não significa sermos permitidas a fazê-lo. Os inúmeros casos de assassinatos e estupros corretivos contra as mulheres lésbicas comprovam que na realidade do opressor nosso amor não é permitido.
Podemos amar. No sentido de que nossa desobediência é nossa forma de rejeitar a realidade do sistema patriarcal, racista, capitalista e heteronormativo. É, em última instância, nossa forma de poder.
Edição: Vanessa Gonzaga