Na noite do último domingo (16), grupos conservadores invadiram o Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam), no Recife, na tentativa de evitar o aborto de uma criança de 10 anos vítima de estupro que teve o procedimento impedido no estado do Espírito Santo, tendo que viajar até Pernambuco para fazer o aborto legal.
O Código Penal prevê em seu artigo 128 como aborto necessário ou legal aquele em que a gravidez é fruto de um estupro ou é a única forma de salvar a vida da gestante, além de casos de anencefalia por determinação do Supremo Tribunal Federal (STF).
“Nós conseguimos proteger a criança, a avó e a própria assistente social que veio do Espírito Santo acompanhando, mas a instituição, principalmente a diretoria, foi exposta e constrangida, mas a gente encara isso como um dever, a gente estava ali para proteger e garantir à menina o direito de fazer o aborto”, afirmou Valquíria Ferreira, assistente social do CISAM e Coordenadora do Serviço de Atenção a mulheres e adolescentes vítimas de violência sexual e doméstica.
No caso em questão, o procedimento teria sido negado no Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), no estado do Espírito Santo, mesmo após autorização judicial para a realização do procedimento pelo juiz Antônio Moreira Fernandes, da Vara de Infância e da Juventude de São Mateus, no Espírito Santo. O Hucam afirmou que não havia os protocolos necessários para realizar o atendimento.
Assim, a criança teve que viajar para realizar o procedimento na capital pernambucana. “Imagina o constrangimento dessa criança e dessa família de estar peregrinando por várias instituições que ao negar esse direito estão causando uma violência muito maior e um trauma muito maior na vida dessa criança e dessa família”, afirmou a assistente social Mônica Gomes, que faz parte da equipe multidisciplinar do Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa, no Hospital Agamenon Magalhães, e atua em uma vara de violência doméstica e familiar do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco.
Ademais, o fato de ter sido necessária uma autorização judicial para a realização do procedimento é algo que vem sendo questionado pelo movimento feminista “No Brasil, uma mulher ou uma criança que foi estuprada não precisa de autorização judicial para fazer o aborto, ela precisa apenas ser acolhida para algum equipamento social ou serviço de referência para realizar o procedimento com sigilo, com acolhimento e com respeito”, disse Nathália Diorgenes, militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e pesquisadora sobre os temas aborto e racismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Ela explica que por lei, o acesso ao aborto legal não deveria ser tão burocrático “Não precisava de autorização judicial como foi feito, isso acontece porque muitas vezes isso não funciona como deveria funcionar; inclusive, para acessar algum serviço de aborto legal, ela não precisa sequer apresentar o Boletim de Ocorrência, porque esse mulher já foi violentada e ela ter que provar a sua palavra é violentar novamente essa mulher”.
Em nota, a Frente Nacional Contra a Criminalização das mulheres e Pela Legalização do Aborto repudiou todo o processo de exposição da vítima e apontou as falhas do Estado em assegurar o direito da menina, colocando a sua vida em risco “No contexto de autoritarismo crescente, onde os direitos sexuais e reprodutivos são rechaçados pelo governo brasileiro, o direito ao aborto legal é novamente ameaçado e a vida de meninas e mulheres é colocada em risco, para salvaguardar o fundamentalismo e fascismo de um governo que entende nossas vidas como descartáveis”.
A advogada Luisa Lins, integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, alerta que o fato da criança ter sido direcionada para unidades de referência para a realização da interrupção da gestação é algo que costuma acontecer, mas não é algo obrigatório. “No caso de violência de estupro, qualquer maternidade pode fazer o procedimento de interrupção de gestação, mas na prática não é o que acontece. Na prática, os médicos se recusam e as pacientes são encaminhadas para hospitais de referência”.
Luisa alerta para a importância de defender os profissionais de saúde que realizam o procedimento. “Há a necessidade de defender esse serviço e os profissionais que estão se colocando à disposição, porque existe uma ameaça muito grande aos profissionais que realizam esse procedimento e toda a equipe, inclusive ontem, o médico chegou ao hospital sob os gritos de assassino”, afirma.
O Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros (Cisam) realiza o procedimento desde 1996, tendo sido o primeiro em Pernambuco. “Eu observo que hoje a gente consegue fazer isso de uma forma mais tranquila, porque assim que o CISAM começou a realizar esses procedimentos, porque enfrentamos isso que aconteceu com essa menina no início, éramos atacados dessa forma, também com bilhetes e ameaças veladas”, afirmou Valquíria Ferreira, que completa “Para a gente foi muito gratificante poder atender essa menina que tinha um direito que estava sendo negado e a gente pôde aqui realizar essa vontade dela”.
Aborto legal em Pernambuco
Em Pernambuco, existem unidades que realizam a interrupção da gravidez em Recife, Caruaru, Serra Talhada e Petrolina. “Pernambuco ainda está muito à frente de outros estados, porque aqui a gente tem três grandes serviços, tanto para a assistência de vítimas de violências quanto de aborto”, aponta a assistente social Mayara Mendes, doutoranda pela UFPE em Serviços de Abortamento Legal no estado de Pernambuco.
“Quando as vítimas procuram o serviço até 72 horas após o estupro, existe o procedimento de prevenir que ela pegue doenças sexualmente transmissíveis ou engravide. Por diversos motivos, muitas das vítimas só procuram os serviços quando é confirmada a gravidez, então já não há o que prevenir, é atuar na consequência do estupro”, explica Mayara, que também faz parte da equipe multidisciplinar do Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa, no Hospital Agamenon Magalhães, localizado no Recife.
A assistente social percebe que a desinformação é um elemento que dificulta o acesso a esses serviços. “Muitas mulheres em localidades de difícil acesso sequer sabem da existência desses serviços, que é uma dificuldade na divulgação deles, que deveriam ser mais notificados, e elas não conseguem chegar por diversas razões, inclusive por condições financeiras, para acessar esses serviços que não estão distribuídos de forma homogênea pelo estado, então acaba que é muito desigual o acesso dessas mulheres a esses serviços públicos” conclui.
Edição: Vanessa Gonzaga