O conservadorismo e o direito ao aborto legal no Brasil foram os temas do último Programa Aqui Pra Nós, na terça (18). As entrevistadas foram Nathália Diorgenes, militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e pesquisadora sobre os temas aborto e racismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e advogada Luisa Lins, que é integrante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. O programa Aqui pra Nós acontece todas as terças, a partir das 19:30h, no canal do YouTube do Brasil de Fato Pernambuco. Confira os principais pontos da conversa:
Acesso ao aborto legal
Nathalia Diorgenes explica que mesmo previsto na lei, os centros de referência para o procedimento não funcionam “Há portarias, normativas e outras políticas para além do Código Penal, mas não há uma lei específica para regulamentar. Os serviços mostram que os centros não funcionam, além de estarem concentrados apenas nos centros urbanos. A gente vê que o número dos serviços vem diminuindo. Há cerca de 100 centros listados no Ministério da Saúde, mas apenas 70 funcionam, isso é muito pouco pro tamanho do Brasil”.
Ela também aponta que os serviços de aborto legal em todo o país enfrentam a descontinuidade, carência de protocolos e da capacitação das equipes. “É urgente que esses serviços funcionem e que consigamos atender as mulheres do campo, das cidades de médio e pequeno porte. Nosso estado tem boas condições, mas precisa avançar. O fato do aborto ser crime piora, precisamos debater a descriminalização e legalização do aborto. Mesmo em casos de abortamento espontâneo as mulheres chegam com medo de serem criminalizadas” lembra.
A advogada Luisa Luis ressalta que qualquer pessoa que precise desses serviços, como uma pessoa vítima de violência, tem o direito de ser atendida em qualquer serviço de saúde, mesmo sem boletim de ocorrência. “O exame de corpo delito deve ser feito com acompanhamento de uma equipe multidisciplinar. Na verdade, todos os locais deveriam fazer o abortamento, mas a maioria se recusa e envia para os centros de referência”.
No caso de risco de vida para quem gesta, Nathalia aponta que não há limite de tempo para interrupção da gravidez “Usaram a norma técnica, mas poderiam usar qualquer outra desculpa para argumentar. Eles estão tentando continuar esse estigma da criminalização. É essa a sociedade que queremos construir, com estupradores sendo pais?” questiona.
Educação sexual
Para prevenir a violência sexual contra crianças, Luisa aponta que a forma mais eficiente é a educação sexual “Não existe outra forma de proteção senão a educação sexual. Punir, prender, castrar não são formas de prevenção. A educação sexual é responsabilidade do Estado e toda a sociedade para cuidar das crianças”.
A advogada também apontou que o conservadorismo e a desinformação acabam mistificando a importância do debate “Diferente do que falam, não é ensinar as crianças a fazer sexo, mas ensinar a identificar o abuso. Não se pode ter educação sexual, mas o tempo todo sexualizam as crianças, em especial as crianças negras.”
Ela aponta que para além do abuso contra crianças, há outras nuances de violência, especialmente no caso de vítimas adolescentes “Mesmo na relação entre adolescentes, as menores de 14 não tem condições de consentir, e as maiores precisam ser ensinadas que o valor do afeto e de um relacionamento e das suas vidas não pode estar ligado ao que elas tem a oferecer pra esses caras, que muitas vezes são muito mais velhos que elas”.
Conservadorismo e direito ao aborto
Especialmente no caso de mulheres e crianças vítimas de estupro, a não interrupção da gravidez pode ser uma forma de perpetuar a violência, conforme Nathalia “O poder de impedir a interrupção da gravidez é devastador na vida das vítimas. As mulheres negras acabam recorrendo ao aborto por serem as que são mais estupradas, além disso, elas estão sozinhas, não só no sentido afetivo, mas social. Quando são estupradas e chegam no serviço elas vão lidar um com um outro problema, que é o racismo institucional”.
Ela também explica que nem sempre a permissão para o aborto legal se aplica para mulheres que estão em relacionamentos num contexto de violência doméstica “Na vida das mulheres negras, tem um agravante que é a violência doméstica. Essas mulheres vivem violência nos seus relacionamentos, mas não especificamente aquela gravidez foi de um estupro, mas ela está rodeada de um contexto de violência. Enquanto se bate nessa tecla de não legalizar o aborto, estamos reforçando o racismo e as estruturas patriarcais”.
Luisa reflete na relação entre o poder econômico e o conservadorismo “O fundamentalismo está diretamente ligado ao dinheiro. O que vivemos hoje é uma releitura do processo de colonização do país com a catequização o modelo de família hetero-cis-patriarcal. Eles lucram com a morte e essa suposta “valorização” da vida. Num dia estão na porta do Cisam chamando uma criança de assassina por causa desse aborto, mas não se importam com as crianças que morrem pela polícia dentro de casa nas periferias”.
Para ela, que também da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, o trabalho de conscientização dos movimentos é importante, mas é essencial cobrar do Estado “para além das ONGs e movimentos, temos que cobrar do Estado, é papel dele prestar apoio e atender essas pessoas. É imprescindível formar e fortalecer os profissionais de saúde que atuam nesses serviços. Os avanços que temos até agora são fruto da luta das mulheres organizadas que há muito tempo tocam essa luta. Precisamos denunciar quem expôs essa criança, porque isso fere o ECA. Quem fez isso deve ser denunciado”.
Fascismo e Direitos Reprodutivos
“É uma relação direta, porque se pauta no controle dos corpos das mulheres. O aborto é sim um tema difícil, espinhoso, coberto por moralidade e temos dificuldade em avançar no debate. Aquelas pessoas estavam ali na porta porque fazem parte algo maior, porque o presidente faz piada com estupro” Explica Nathalia, que relaciona o avanço conservador na pauta dos direitos reprodutivos com o governo Bolsonaro.
Para além da carga de violência contra a mulher, ela explica que o estupro está dentro de uma estrutura social “ O estupro é um crime social: um homem comete, mas toda a sociedade legitima. Quando essas coisas acontecem, você diz que o estupro nesse país é bem vindo. Esse é o recado do fundamentalismo religioso”.
Ela projeta que esse momento abriu as portas para o debate em torno do aborto “É importante aproveitar esse momento para pautar a luta pela legalização do aborto, porque esse foi um caso, mas todos os dias tem mulheres e crianças tendo suas vidas e corpos violentados. É uma sucessão de ataques aos direitos humanos e isso também se aplica quem estava lá na porta desumanizando o atendimento daquela criança” conclui.
Edição: Monyse Ravena