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Coluna

Estupro culposo e a culpabilização da vítima

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O termo "Estupro Culposo" logo foi adotado pelo movimento feminista para denunciar a face patriarcal do sistema de justiça - Levante Popular da Juventude
"Estupro culposo" é quando se tem a intenção de justificar e inocentar o estuprador

“Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados de assassinato são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?” – essa é uma das frases que Mariana Ferrer, jovem (estuprada) pelo empresário André Aranha, pronunciou enquanto era atacada pelo advogado Claudio Gastão da Rosa Filho ao prestar seu depoimento na justiça. Sob a cumplicidade silenciosa do Ministério Público do Estado de Santa Catarina e do Juiz da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, Mariana teve sua dor silenciada e sua vida revirada, mesmo ocupando o lugar de vítima no processo. Enquanto se defendia das acusações de levar uma vida amoral, em que pousava com fotos sensuais nas redes sociais, ouviu do seu novo agressor – o advogado Cláudio Gastão – que ela não tinha “nível” para ser sua filha.

O silêncio do juiz do caso, que só se pronunciou para autorizar a vítima a “tomar um copo d’água” e tentar se acalmar, somado ao perverso descaso do Ministério Público de Santa Catarina, intensifica ainda mais o cenário que pode ser descrito como um campo de tortura contra Mariana, jovem de 23 anos de idade. Não é novidade para ninguém a ausência de acolhimento do sistema judiciário nos casos de violência sexual, o que inclusive leva a uma cifra oculta de mulheres que passam por uma agressão e preferem não denunciar às autoridades competentes. Para quem atua profissionalmente na esfera do processo penal, cenas assim são corriqueiras, especialmente quando se trata de denuncias de violência (seja sexual, seja física) de mulheres negras. 

É importante que a audiência tenha se tornado pública, para que se debata o horror que as mulheres vítimas de violência sofrem não só do seu próprio agressor, mas também nos corredores e nas salas de um sistema judiciário estruturado pelo patriarcado e pelo racismo.

Em 2018, o Conselho Nacional de Justiça lançou o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros, no qual se constatou que 63% dos magistrados brasileiros são homens e 75% são brancos/brancas. Esse dado é fundamental para entendermos que a seleção que forma o judiciário no País é, como todo e qualquer outro processo seletivo em uma sociedade desigual, fundada em marcadores sociais de raça e de gênero. 

São homens brancos que, em sua maioria, julgam e analisam a responsabilidade penal de um outro homem acusado de estupro. Quando esse acusado é – tal qual o é André Aranha – um outro homem branco, a cumplicidade dos machos vem à tona e a justiça, no lugar de agir com a suposta imparcialidade que lhe é inerente, o retira do banco dos réus para colocar, em seu lugar, a mulher vítima da violência.

No caso de Mariana Ferrer, mesmo as provas de DNA e de perícia comprovando o rompimento do hímen, somadas aos testemunho do UBER que a levou de volta para sua residência, da sua mãe que a recebeu enquanto ainda estava dopada e dos áudios que enviou aos seus amigos logo depois do estupro, foram insuficientes para que a justiça considerasse existir provas nos autos capazes de justificar uma condenação. É que, conforme entendeu a promotoria e a justiça, embora houvesse provas de que houve o estupro, não havia provas de que André Aranha sabia da situação de vulnerabilidade da vítima.

De acordo com o art. 217-A do Código Penal, em seu parágrafo 1º, é vulnerável aquela pessoa que não pode oferecer resistência à violência sexual. Esse crime existe com a finalidade de agravar a pena por estupro daquele que se aproveita de situação vulnerável da vítima. Essa vulnerabilidade caracteriza-se pela inconsciência, embriaguez, enfermidade ou outras razões capazes de reduzir ou impedir o discernimento da vítima sobre o que está acontecendo no momento da violência.

Ao que foi divulgado na imprensa, a decisão da justiça foi baseada na ausência de provas de que André Aranha sabia que Mariana estava vulnerável. Embora a vítima tenha dito que estava dopada, embora as testemunhas tenham declarado que seu comportamento era similar ao de alguém incapaz de discernir a realidade, embora os exames periciais tenham comprovado a virgindade da vítima e o rompimento do hímen apenas após a violência sexual, levou-se em conta a suposta ignorância do acusado quanto à vulnerabilidade da vítima. Em outras palavras, para a justiça, André Aranha não teve a intenção (o dolo) de aproveitar-se da ausência de discernimento e incapacidade de resistência que Mariana apresentava no momento do estupro.

Para além da discussão dogmática e jurídica sobre o que é vulnerabilidade e como é possível se fazer prova dessa situação, o que chama atenção ao caso é que a justiça não levou em consideração sequer a ausência de consentimento de Mariana para o sexo. Ou seja, pouco importou – aos olhos da Promotoria de Santa Catarina e do Juiz da 3ª Vara Criminal de Florianópolis – se Mariana quis ou não a prática sexual. Se Mariana foi constrangida ou não a ser estuprada pelo seu agressor. Se seu silêncio – seja pela incapacidade de resistência, seja pelo temor e horror da violência – caracterizou um consentimento. Foi mais importante saber se havia prova de que a vítima estava dopada do que saber se a vítima sofreu ou não o estupro. A decisão, na forma que foi divulgada, é uma verdadeira demonstração de que o sistema judiciário brasileiro até hoje não aceitou que não é não e que a ausência de sim, é não também.

O termo "estupro culposo" foi adotado pelo Jornal The Intercept para resumir o caso em que restou, para o juiz do caso, incontestavelmente comprovada a conjunção carnal, mas não suficientemente comprovada a falta de discernimento ou o poder de apresentar resistência da vítima. O termo logo foi adotado pelo movimento feminista e das mulheres para denunciar a face patriarcal do sistema de justiça e a cultura do estupro. Ainda que o termo não tenha sido expressamente utilizado do processo, o que houve foi a utilização pelo promotor da expressão "sem intenção", o fato é que as  mulheres ainda convivem com justificativas ao crime de estupro como as que apareceram no processo. 

"Estupro culposo" é o "sem intenção", é o MAS. "Ela foi estuprada MAS olha as roupas que ela usa". "Estupro culposo" é quando se tem a intenção de justificar e inocentar o estuprador. Estupro não tem justificativa. É estupro e ponto. A culpa nunca é da vítima. Nos próximos dias ocorrerão atos em todo país por Justiça Para Mariana Ferrer e que seja por todas as mulheres, pelas nossas vidas livres de violência. Mais dias de uma batalha legítima nas brechas do desnudamento do sistema patriarcal em que vivemos do qual o sistema de justiça é espelho em sua natureza.

*Artigo feito em parceria com Elisa Maria, advogada e militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM)

 

Edição: Vanessa Gonzaga