Campanhas como a "Eu Voto em Negra" nestas eleições impulsionaram um maior número de candidatas
O resultado das eleições de 2020, expressa por um lado, a continuidade da segmentada realidade brasileira no que se refere às desigualdades de gênero e sexualidade, raça e classe, tendo em vista que se conservou a sub-representação da classe trabalhadora, em especial das mulheres, população negra e indígena, LGBTQIA+ que a compõem. No entanto, várias campanhas, a exemplo do “Eu Voto em Negra” e “Meu Voto Será Feminista” impulsionaram um maior número de candidaturas destas populações. Foram 90.753 candidaturas de mulheres que se autodeclararam pretas ou pardas, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral. Estatística 23% maior que em 2016. Pela primeira vez na história eleitoral do país, houve um número de candidaturas negras superior ao de brancas, foram 277 mil candidaturas negras.
Apesar dos obstáculos em colocar as candidaturas, o desafio seguinte é o de conseguir elegê-las. Contudo, a vitória destas candidaturas ganha destaque justamente por se tratarem de exceções, ou ainda, desvios na rota destes corpos, assim como no da política eleitoral brasileira. Acostumados a ocuparem imagens de controle nas altas estatísticas no que se refere aos piores índices sociais, tais como a pobreza, violência, feminicídio, a presença destas sujeitas e sujeitos enquanto representantes políticos impacta e suscita legítima comemoração para todos que almejam o fim das desigualdades sociais.
Se, as mulheres representam 51,8% da população brasileira e 52% do eleitorado, e a população que se autodeclara preta ou parda significa mais de 54% há que se enaltecer o crescimento do resultado para o executivo, que nas eleições do ano de 2016, contou com a presença de 11,57% de mulheres enquanto em 2020 aumentou para 12,2%. É bem verdade, que foi um tímido aumento, contudo o fato de não haver diminuído, tendo em vista o avanço do conservadorismo em todas as esferas das relações sociais e políticas no contexto brasileiro desde o impeachment da primeira presidenta eleita no país, Dilma Rousseff, parece um sinal de resistência.
Em relação à Câmara, foram 16%, o que significa o número de 9.196 vereadoras contra 84%, ou seja 48.265 vereadores eleitos. Sabemos que desse número de mulheres, se arrasta ainda a “tradição” de que algumas ocupam lugares figurativos, de modo que o exercício da atividade política é realizada por algum homem, em geral o pai, esposo, ou algum colega de partido da candidata. Da porcentagem de mulheres eleitas vereadoras apenas 6,3% são negras.
Tivemos não apenas o aumento de candidaturas de pessoas trans, assim como o exponencial crescimento de candidaturas eleitas, foram 25 em todos o país, o que representou o aumento de 200% em relação às eleições de 2016. Para além disso, muitas destas candidaturas estiveram como as mais votadas, angariando expressivo número de votos. Expressiva também foi a vitória de várias vereadoras e vereadores que conjugaram o maior número de votos com o fato de serem os mais jovens eleitos em muitas cidades brasileiras.
No Estado de Pernambuco tivemos como exemplo a vereadora eleita Flávia Hellen, 26 anos, militante do movimento negro e feminista, primeira vereadora negra da cidade de Paulista. Na cidade de Olinda, o vereador mais jovem eleito Vinícius Castello, 26 anos, militante do movimento negro, LGBTQIA+ e direitos humanos. Em Garanhuns, a primeira candidatura coletiva à vereança, Fany das Manas, composta por três mulheres, que tinha como bandeiras a defesa dos direitos das mulheres, mandata participativa e popular e combate às violências. Dani Portela, advogada, historiadora, mãe, foi a vereadora eleita com maior número de votos na cidade de Recife e teve como porta estandarte da sua campanha a luta feminista e antirracista e o combate às opressões. As mulheres, com destaque para as mulheres negras protagonizaram ainda as candidaturas coletivas (257) que se espalharam por todo o país, assim como escancararam em seus mandatos populares a autodefinição enquanto mães e a preocupação em construir cidades que priorizem os direitos destas importantes sujeitas, as mães das periferias, indicando um novo jeito de se fazer representar na política.
Assim, o que quantitativamente parece invisível, as vitórias destas personagens tem um importante significado. Em sua maioria, representam candidaturas orgânicas das periferias, sendo muitas delas as maiores recebedoras de votos em suas cidades, o que demonstra a capacidade de representação destas figuras e alternativa à sobrevivência física quanto política das populações que identificadas as elegeram.
Importante destacarmos este sinal, que desde as últimas eleições presidenciais no ano de 2018, indicavam as mulheres negras jovens como as que menos votaram no representante máximo do atraso, o candidato Jair Bolsonaro. Importante compreender o fenômeno em curso, em que estas candidaturas autenticam a subversão do lugar de subalternidade a que as opressões imbricadas e sólidas na realidade brasileira parecem querer eternizar. Em se tratando de personagens vinculadas a projetos de transformação social a partir do protagonismo da classe trabalhadora parece vital a compreensão e engajamento neste fenômeno que indica saídas populares e coletivas de fazer política. Salientamos ainda que estas mesmas candidaturas eleitas e em muitas cidades as que tiveram maior expressão de votos, catalisaram o protesto ao genocídio do povo negro, o combate ao desemprego e as desigualdades no mercado de trabalho para negras e negros, a transfobia, a sub-representação destas populações, assim como reivindicaram mecanismos sociais que subsidiem a participação de mulheres, que dentre outras autodefinições são também mães, nos espaços públicos.
Muitas destas sujeitas que são linha de frente na construção e melhoria das comunidades em que vivem se lançaram e lançaram candidaturas autênticas à linha de frente na defesa dos seus. Importantes passos estão sendo dados no sentido de ressignificar a política de modo a percebê-la como algo que perpassa e é também realizada na vida cotidiana das pessoas assim como em reduzir o abismo de representação das sujeitas, que têm corpos, desejos, territórios, projetos que abarcam particularidades sendo coletivos.
Edição: Monyse Ravena