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“Se a casa é do povo, ela tem que abrir as portas”, diz Dani Portela

Vereadora mais votada do Recife, líder do PSOL tem desafio de combater o governismo e o bolsonarismo na Câmara Municipal

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Dani Portela conquistou seu primeiro mandato com surpreendentes 14,4 mil votos, que lhe colocaram como a parlamentar mais votada da capital pernambucana. - Comunicação PSOL

O trágico ano de 2020 foi de poucas alegrias para a maior parte da população, que precisou lidar com retrocessos no campo econômico, político, social, educacional e outras áreas da vida. A disputa eleitoral, realizada em novembro, guardou algumas poucas surpresas positivas, como as amplas votações de lideranças progressistas, ligadas às lutas das mulheres, da população negra e dos LGBTs. No Recife, a advogada e militante feminista Dani Portela (PSOL), conquistou seu primeiro mandato com surpreendentes 14,4 mil votos, que lhe colocaram como a parlamentar mais votada da capital pernambucana.

Em entrevista ao Brasil de Fato Pernambuco, Dani mencionou os desafios de fazer campanha durante uma pandemia, o simbolismo de sua votação, a nova composição da Câmara do Recife e os desafios de fazer oposição numa casa parlamentar amplamente governista e cujos companheiros de bancada opositora são em sua maioria bolsonaristas. A vereadora conta o que espera da relação com os blocos governistas e os bolsonaristas e diz que está tentando a criação de uma nova comissão na Câmara para discutir projetos que visem reduzir a desigualdade racial. Confira a entrevista.

Brasil de Fato Pernambuco: Considerando as dificuldades da disputa eleitoral, onde o poder econômico tem hegemonia, você se surpreendeu ao ser a vereadora mais votada do Recife, com mais de 14 mil votos?

Dani Portela: Foi uma surpresa. Desde 2018, quando me candidatei pela primeira vez, ao Governo do Estado, fizemos uma projeção que naquela ocasião foi alcançada. Projetamos fazer a disputa, defender um programa à esquerda, com uma oposição de fato ao PSB. E aquela eleição me deu uma visibilidade. Eu acabei em 3º lugar, apesar da campanha sem recursos. Isso amplia a nossa voz, a defesa de um programa de esquerda, antirracista, feminista e pensado coletivamente com a classe trabalhadora. Então o 2020 não foi algo repentino, mas uma construção que foi se consolidando ao longo dos anos.

Nas ruas escutamos muito que a maioria dos políticos só aparece a cada quatro anos e depois somem. Mas o PSOL atua junto a movimentos sociais, ONGs, nós continuamente temos ações nesses territórios. Tínhamos a previsão de conseguir ser eleitos dentro das vagas, mas chegar em 1º lugar foi uma grata surpresa. Essa vitória não foi minha, mas coletiva, de atrizes e atores políticos historicamente invisibilizados na nossa cidade. Se a casa é do povo, ela tem que abrir as portas. E esse é o desafio para mim.

BdF PE: Em que momento você teve o sentimento de certeza de que seria eleita?

Portela: Em 2018 eu senti que teria um bom resultado no dia que teve o ato do “Ele Não”, das mulheres unidas contra Bolsonaro (uma semana antes do 1º turno). A receptividade à minha presença naquele local, no ano da morte de Marielle Franco, o nosso comitê aberto, eu senti a campanha crescendo porque eu vi as pessoas chegando. Teve dia de circularem mais de 3 mil pessoas no comitê.

Mas em 2020 foi tudo muito incerto, fazendo campanha durante a mais grave crise sanitária enfrentada pela nossa geração. Tudo foi diferente. Muitas atividades virtuais. Importante pontuar o quanto essa pandemia escancarou as desigualdades. Houve atividades em que, de 10 pessoas que eu abordei, quatro delas não possuíam aparelho celular e nem acesso a internet, mesmo sendo jovens. É uma ilusão achar que essa “revolução digital”, o ensino e o trabalho remoto chegam a todas as pessoas. A pandemia mostrou que não.

Por isso eu não deixei um dia sequer de subir os morros do Recife, fazendo o olho no olho com as mulheres que chefiam seus lares, grande parte negras. Mas não fiz atividades presenciais de grupo. O “feedback” estava muito difícil de sentir. E já que não tive comitê para as pessoas pegarem material, preparamos kits com material de campanha para serem entregues em casa via motoboy. Mas chegou um momento em que a pessoa não dava mais conta das entregas. Contratamos mais um, mas também não estava dando conta. Aí percebemos que a campanha estava espalhada pela cidade.

Mas a certeza do resultado eu só tive no final. Mesmo durante a apuração, as pessoas falando que eu estava em 1º lugar, mas eu dizia para ter calma. E para além da quantidade de votos, a simbologia, porque há quatro anos, em 2016, a vereadora mais votada foi Michele Collins (PP), uma mulher evangélica do campo mais fundamentalista religioso. E quatro anos depois, uma mulher negra, feminista, antirracista, anticapacitista, anti-LGBTfobia.

BdF PE: E o eleitorado do Recife votou pela mudança na Câmara de vereadores. Das 39 cadeiras, 18 perderam o mandato. Quase metade. Mas algo que pouco mudou foi o amplo domínio do bloco governista. A base de apoio do prefeito João Campos (PSB) já nasce com dois terços da casa, 26 nomes, contra 12 da oposição. Como fazer o enfrentamento numa circunstância desigual dessa?

Portela: Dos 39 vereadores, quatro são pessoas negras. Eu sou a única mulher negra. Das seis mulheres na legislatura anterior, ampliamos para sete. Então ainda há uma disparidade muito grande de gênero e raça na composição da Câmara. E o PSB, apesar de vitorioso, não alcançou o desejado. Em 2019 e 2020 o PSB trouxe muitos vereadores com mandato para tentar reeleição, esperava fazer 19 cadeiras, mas fizeram 12. O bloco governista segue com maioria, mas não podem subjugar a oposição.

Importante ver que a oposição não é homogênea. Dentro dela há dois blocos: um mais à direita, com pessoas ligadas ao fundamentalismo religioso, no campo bolsonarista; e um bloco de oposição mais à esquerda, com vereadores do PSOL e do PT. Este bloco ao qual pertenço entende que em vários momentos as pautas serão comuns. No meu discurso de posse, ressaltei a importância de a Câmara atuar de maneira independente do Executivo. O legislativo precisa ser autônomo e trabalhar pela melhoria da qualidade de vida do povo recifense.

BdF PE: Mas a composição da Mesa Diretora dá um sinal totalmente oposto, já que é quase 100% pró-governo, que tem oito das nove cadeiras na mesa. Como foram os diálogos entre os partidos do bloco governista e da oposição para formar a Mesa Diretora? Os parlamentares que ocupam esses cargos na mesa definem a agenda de temas e projetos a serem debatidos e votados. Acabam tendo um pouco mais de poder.

Portela: Na eleição da Mesa o vereador Ivan Moraes (PSOL) chegou a “bater chapa” (se candidatou à presidência) e obteve os votos meu, dele próprio e dos vereadores Liana Cirne (PT) e Jairo Britto (PT). Entendemos que naquele momento era muito difícil para nós fazermos uma composição única para a mesa, principalmente por termos construções políticas com movimentos de luta pelo direito à cidade, movimentos de moradia, do transporte e mobilidade.

E no fim do ano de 2020 foi muito ruim a forma que a Câmara votou o Plano Diretor da cidade do Recife, numa sessão extraordinária no dia 28 de dezembro, em que os vereadores aprovaram o Plano sem debate, sem ouvir a população, fazendo alterações nas áreas de interesse e proteção social, com interesses claros de atender ao “grande capital”, as construtoras, em detrimento da preservação do meio ambiente e do local de moradia das pessoas. Então a Câmara votar projetos que alteram os bairros pelos próximos 10 anos, impactando diretamente as vidas das pessoas sem sequer consultar essas pessoas, então não tínhamos como fechar uma composição com esses mesmos vereadores.

A postura independente e autônoma é algo que afirmo como desejo meu, a partir da minha compreensão política. Essa mesa, que vai coordenar os trabalhos da Câmara pelos próximos dois anos, encabeçada pelo novo presidente, Romerinho Jatobá (PSB), ele anuncia que mesmo sendo do campo governista, estará aberto a dialogar com todos os campos. Espero que esse diálogo realmente exista, entendendo que em alguns momentos estaremos juntos pela melhoria do Recife, mas noutros momentos estaremos em campos opostos. Pautas ligadas às lutas pela igualdade racial e pela equidade de gênero para mim são inegociáveis.

BdF PE: E como estão sendo os diálogos para a ocupação de espaço nas comissões temáticas?

Portela: Um dos pleitos meus é a criação de uma nova comissão, a de Igualdade Racial. O Recife é uma das poucas capitais do país que sequer tem um estatuto da Igualdade Racial. Precisamos entender que o racismo não é uma pauta isolada ou um recorte, mas é parte da estrutura da nossa sociedade e está ligado a todas as desigualdades sociais. A segurança pública, o sistema prisional, a falta de água e saneamento, a mortalidade materna... essas e muitas outras pautas são diretamente ligadas à desigualdade racial.

BdF PE: Na oposição há você, Ivan Moraes (PSOL), Liana Cirne (PT) e Jairo Britto (PT), mas os outros sete ou oito da oposição são de direita, a maioria alinhados ao bolsonarismo, alguns deles são anti-esquerda, antifeministas, anti-PT. Em alguns momentos vocês precisarão se unir para tentar barrar pautas do governo João Campos (PSB). O que você espera desse diálogo entre grupos tão antagônicos?

Portela: Nesse campo da oposição de esquerda o PT elegeu três vereadores e o partido ainda está discutindo qual será sua posição (o vereador Osmar Ricardo, do PT, ainda não tornou público seu alinhamento junto à base governista ou à oposição). Tenho muito claro o meu papel nesse período histórico, que é fazer oposição ao PSB no Recife e nacionalmente enfrentar um dos maiores desafios do nosso tempo, que é fazer oposição a Bolsonaro e ao bolsonarismo. É a tarefa dos nossos próximos dois anos. Precisamos enfrentar o bolsonarismo em cada município desse país.

A eleição de 2020 foi um divisor de águas. Além dos debates estruturais locais, como saneamento, calçamento de rua, são importantes e foram debatidos. Mas foi uma eleição muito nacionalizada, em que confrontamos um Governo Federal genocida e negacionista, que agora nega até a vacina. É difícil pensar em compor com esse campo mesmo localmente. É a minha posição. Mas haverá votações em que a oposição da esquerda e direita se juntem para impedir alguma política danosa imposta pelo PSB. Há pautas em que podemos dialogar. Mas em diversas outras pautas vamos divergir muito.

BdF PE: Pensando nos futuros projetos de sua autoria, você tem mais chances de encontrar aliados progressistas dentro do bloco governista, que tem PCdoB e PSB, do que na oposição. Você acha que terá mais diálogo com o governo ou com a oposição?

Portela: Em algumas pautas, como dos direitos das mulheres, por exemplo, nós elegemos três parlamentares declaradamente feministas: eu, Liana (PT) e Cida Pedrosa (PCdoB). Vamos dialogar sim por uma cidade melhor para as mulheres recifenses. Mas essa previsão é difícil. Sou uma pessoa que dialoga antes de enfrentar, mas que não foge de uma boa luta.

BdF PE: O que você achou da bancada de vereadores dos partidos da centro-esquerda – e aqui conto como PSOL, PT, PCdoB e PSB?

Portela: Do meu lugar de enfrentamento ao racismo, que luta pela promoção da igualdade de gênero, acho que avançamos sim. Apesar das sete vereadoras, os espaços de poder ainda são muito masculinos e o lugar da mulher na sociedade ainda é muito ligado ao privado, à casa, aos cuidados. É de um jeito que só em 2016 foi construído um banheiro feminino no plenário do Senado Federal, havendo senadoras na casa desde a década de 1970.

Mas olhando o número de mulheres negras que se candidataram no país, acho um avanço sim. Elegemos vereadoras feministas. Não sou Dani “de fulano”. Muitas mulheres chegam nesses espaços por serem filhas ou esposas de alguém referendadas sempre por um homem. Não somos assim. E podemos esperar uma legislatura diferente, porque as mulheres quando se juntam são como água, elas crescem e se espalham. É o que vai acontecer com a luta feminista na cidade do Recife.

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Edição: Vanessa Gonzaga