Jussara Salazar vem fazendo uma trajetória absolutamente notável, apesar da discrição que marca sua pessoa e sua presença na cena literária e artística brasileira. No finzinho do doloroso ano passado, saiu sua última obra, O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros, pela editora Cepe, num momento em que poucos puderam festejar o acontecimento como ele merecia; porém trata-se, ao mesmo tempo, de uma continuidade de seus projetos de longa data, e de uma peça forte, única na poesia brasileira atual. Não foi mesmo à toa que recebeu o 6º Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura.
Nascida em Pernambuco, em 1959, Jussara Salazar vive em Curitiba desde 1985. Começou sua trajetória como artista plástica, sutil, com várias exposições pelo país, e hoje também realiza trabalhos refinados de design editorial. Como poeta, já produziu livros-objetos, edições artesanais e livros tradicionais, tais como Inscritos da casa de Alice (1999), Baobá, poemas de Leticia Volpi (2002), Natália (2004), Coloraurisonoros (2008, publicado em Buenos Aires), Carpideiras (2011), O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas (2014) Fia (2014) e Corpo de peixe em arabesco (2019). É uma trajetória de produção que passa de duas décadas, com uma tripla marca recorrente: sutileza, pesquisa e projeto unitário.
A sutileza em Salazar está na recusa do dado imediato, do sentimentalismo piegas que, vira e mexe, volta a assolar a poesia brasileira com transbordamentos afetivos, ou um anseio apressado de comover o leitor do modo mais barato. Pelo contrário, até quando toca nos assuntos mais delicados, tal como as carpideiras do livro homônimo ou as fiandeiras de Fia, com seus rastros de vida e morte em coletividade, Jussara busca mover a leitura e a audição dos poemas pelo engajamento material da linguagem, pela construção lenta em ritornelos e desvios, pelo embate mesmo das vidas ali envolvidas, ela própria se envolvendo incontornavelmente.
A pesquisa vem dos projetos em diálogo com mundos outros: como disse acima, carpideiras, fiandeiras, etc., em cidades distantes do centro urbano, passam a ser não só assunto, como a matéria mesma para poéticas que a poeta desenvolve a partir de um aprofundamento nesses modos de vida. Nesse sentido, a trajetória de Jussara é uma trajetória em que a pesquisa sobre o outro se torna um modo de outrar-se, inventar-se como ser de linguagem variável, atento a mundos diversos. Cada livro passa a ser assim um universo que aponta para fora da página, sem nunca deixar de ser força da língua viva, tesa, acesa ao meio-dia.
Isso leva ao terceiro ponto, o projeto unitário. Praticamente todos os livros de Salazar são marcados por uma profunda unidade de composição, tema e estilo. Recusam-se a ser meros ajuntamentos de poemas escritos ao longo de anos; e, mesmo quando são coleções, como parece ser o caso de Corpo de peixe em arabesco, percebe-se logo que a escolha dos poemas, sua disposição ao longo do livro e sua dimensão linguística fazem uma unidade singularíssima numa trama linear. Ou seja, mesmo na fragmentação possível, a sutileza de sua escrita reinventa a unidade, que emerge complexa, repleta de nuances que vão se desenvolvendo no tempo do livro.
Faço esta longa introdução, porque O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros é um pouco disso tudo ao mesmo tempo. O mote do livro é apresentado numa nota introdutória da autora, que concentra perfeitamente a amarração expressa do projeto e que cito integralmente:
"Os poemas deste livro, escritos ao longo de dez anos, foram inspirados em três histórias reais: Zia, minha tia-avó, que teve seus pertences queimados em praça pública e seu nome silenciado quando fugiu com seu grande amor. A segunda, Maria da Conceição Bueno, degolada por um soldado enciumado no século XIX, veio a ser posteriormente cultuada como santa popular. A terceira e última, Beatriz, era soprano e foi atingida na boca por uma bala vinda da arma de um homem que atirava a esmo do décimo andar de um edifício. Peço licença a Brecht para emprestar parte do título in memoriam da luta e da beleza trágica destas três mulheres."
Três poemas longos dividido em partes — Zia, fogo e silêncio, Maria, a degolada, Lamento para Beatriz — que são também três vidas, atravessadas por modos de feminicídio: a morte via linguagem, do irmão que silencia e queima os pertences; o assassinato puro e simples, por ciúmes; a violência gratuita das grandes cidades. Três corpos femininos com tragédias pessoais, que são tragédias públicas da vida brasileira, todas atravessadas por silenciamentos (do nome, da garganta, da boca), cuja beleza pode e deve ser cantada num gesto de retomada da voz.
Jussara Salazar, porém, sabe, talvez mais do que ninguém, que a retomada da voz não é o grito desmesurado, nem a chamada desesperada por compaixão: a retomada da voz é, talvez paradoxalmente, a proliferação das vozes, que contrastam a potência de beleza do horror contra essas vidas com a potência de beleza do que essas mesmas vidas poderiam ter sido, não fossem assim silenciadas, cortadas. Aí está o jogo de sutileza, de pesquisa, de projeto. Dez anos de escrita reunidos num gesto forte e pungente, sem cair no sentimento fácil, arrancando das cenas, entre vividas e imaginadas, o ponto em que a tragédia pessoal se torna a repetida farsa pública. Vejamos um trecho de Zia, fogo e silêncio:
Acendeu o fogo
O baú queimou
ao mesmo sol
de todos os dias
Um broche apertado
um dia entre os dedos
sangra as mãos de Zia
verga as ramagens
eriça o capim
fere o pasto
lamento de bem-te-vis
[…]
Punhos fechados
Nono pronuncia:
teu nome calará para sempre
Zia
Silêncio
O vento responde:
amanhã das urtigas se erguerão flores
e um canto de amor sobre as cinzas
perguntará ao fogo
onde andará a tua voz longínqua
das pedras do chão
brotarão as flores
e o silêncio
do meu exílio
do sol empoeirado
de um fio de estrelas
das sete pragas
nascerão meus filhos
[…]
A cena-ápice da tragédia: o incêndio das roupas e objetos de seu baú por Nono, o grito de silenciamento, tudo é feito por desvios rápidos, com poucos adjetivos, que vão marcando o broche, as mãos, a natureza em torno, tudo que se contorce ante a linguagem do homem. O próprio gesto do silenciamento (“teu nome calará para sempre”) é seguido pelo imediato retorno ígneo do nome/alcunha “Zia”. Silêncio é só o que o vento responde, enquanto as urtigas da fala se renovam em flores, e a linguagem faz seu gesto demiúrgico da dar nova vida a Zia, nova voz, que canta, profetiza e prolifera em filhos: canto-flor-gente. Algo similar acontece em Lamento para Beatriz:
Da loucura e suas balas
Meester snyt die Keye ras, myne name is lubbert das
[De A extração da pedra da loucura de Hieronymus Bosch]
assim
a soprano sem pudor
abria a boca oh senhor!
[como cantava aos pássaros?]
sobre o parapeito da janela
abria roupa abria os braços
e sua voz
saltava
sua voz
a soprano um ícaro
suas asas de vela
as asas as balas
atravessando o espaço
levavam o vestido vermelho dela
apagavam o batom
lavavam o chão do asfalto
quando soprando na voz dos anjos
ela pariu seu canto partiu
seu pranto
desse mundo
cuspido no seu prato
_mestre, retire a pedra — o nome dele é lubbert das!_
Novamente, a cena mais forte da narrativa, o momento em que a bala atinge a soprano Beatriz em pleno canto (aqui tornada um Ícaro que afunda entre voo e gorjeio de pássaro), se organiza em contraponto à famosa pintura de Bosch citada como subtítulo e epígrafe. Em vez da descrição realista dos acontecimentos, temos uma série de desvios que vão sutilmente entrelaçando (canto aos pássaros, parapeito da janela, balas, ícaro, velas, o sangue — nunca explicitado — no vestido, descendo até o asfalto, o pranto e o prato em paronomásia violenta de canto e comida etc.), de fato tecendo, um acontecimento que não se resume à tragédia física da dor de Beatriz. A sutileza está precisamente na tradução “errada” da citação: myne name is lubbert das seria “meu nome é lubbert das”, porém estamos falando da pedra da loucura (não da bala que atinge Beatriz), portanto do atirador anônimo (“o nome dele é lubbert das”). Esse atirador que só aparece metonimicamente pelas balas que lança ao léu e atingem a boca da soprano é o símbolo da loucura e a manifestação de sua pedra que violenta o corpo alheio.
Há tempos não tínhamos uma tal capacidade de estar simultaneamente dentro e fora de uma experiência radical. Só poderia vir de uma poeta pesquisadora, de uma poeta atenta às complexas unidades que o mundo faz em sua fragmentação, de uma poeta que sabe o verdadeiro dever ético de ter muitas vozes, ser muitas vezes o cerne da dor. Neste que foi talvez o grande livro de poesia brasileira de 2020, saído nos estertores desse ano de luto e silenciamento, um fim de ano ainda por cima marcado por vários feminicídios, Jussara Salazar faz com maestria o que vinha já fazendo há décadas. Devolve o mundo ao mundo, com toda sua beleza e violência; produz o impacto, o corte de faca que só um poema pode conceber.
Guilherme Gontijo Flores é poeta, tradutor, ensaísta e professor de Letras da Universidade Federal do Paraná