Pernambuco

ENTREVISTA

Cheila Bedor: "É um erro achar que contaminação por agrotóxicos é só por alimentação"

Pesquisadora de intoxicação por agrotóxicos enfatiza que o modelo produtivo químico-dependente expõe a todos

Brasil de Fato | Recife (PE) |

Ouça o áudio:

Em 2020 foi aprovado o maior número de agrotóxicos da história do Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro - Antonio Cruz/Agência Brasil

Em Pernambuco, o número de notificações de pessoas contaminadas por agrotóxicos de 2007 a 2019 foi de 794 pessoas, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde. E esse número tende a aumentar, considerando que em 2020 foi aprovado o maior número de agrotóxicos da história do Brasil pelo presidente Jair Bolsonaro: foram um total de 493 produtos. Dentro deste tema, o Programa Brasil de Fato Pernambuco conversou com Cheila Bedor, doutora em Saúde Pública pelo Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães e pesquisadora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) sobre a intoxicação por agrotóxicos na região. 

Confira os principais trechos:

Brasil de Fato Pernambuco: Como você analisa a intoxicação por agrotóxicos aqui em Pernambuco?

Cheila Bedor: A questão do agrotóxico é um problema nacional. Todos os lugares que tem plantação, nós temos casos de intoxicação. Temos as grandes empresas e as grandes plantações de monocultura; e temos também a agricultura familiar, que também está exposta a isso. 

:: Receba notícias de Pernambuco no seu Whatsapp. Clique aqui ::

Aqui no submédio do Vale do São Francisco, onde está localizada Petrolina e as regiões circunvizinhas, a gente vem notando desde 2008 (quando foi publicado um dos primeiros trabalhos feitos com os trabalhadores rurais, no qual a gente via o número de intoxicações referidos por esses agricultores) o aumento desses números. Em 2019, eu fui dar uma palestra e peguei os números de trabalhos publicados aqui na região das intoxicações. E chamou muito a atenção como elas vêm aumentado. Por exemplo, no trabalho de 2008, a gente achou uma intoxicação referida de 7%. Em 2018, quase 10 anos depois, um outro pesquisador identificou 9%. No mesmo ano em 2018, tive um estudante que estudou um único projeto de irrigação e essa taxa de intoxicação referida já passou para 14,5%. Ou seja, a gente vem notando esse crescimento ao longo dos anos. E isso é até esperado, dado o volume de agrotóxicos que é permitido no Brasil. 

BdF PE: Na zona rural existem muitos trabalhadores rurais, alguns que trabalham com agricultura familiar e outros para o agronegócio, e muitos deles utilizam do agrotóxico. Qual a incidência da intoxicação por agrotóxicos para os trabalhadores rurais? 

Cheila: Tem um dado muito interessante de 2014, que fizemos um levantamento das intoxicações em geral de 2007 a 2011 em que quando a gente ia ver quais eram os principais compostos responsáveis pela intoxicação, os agrotóxicos ficavam em segundo lugar, porque em primeiro lugar vai ser sempre remédio. A gente sabe disso por causa da facilidade de acesso e outras coisas também. Em segundo lugar, estavam os agrotóxicos, e a gente viu que 34% das pessoas acometidas eram trabalhadores rurais. Ele vai estar exposto de diversas maneiras, mesmo quando está totalmente vestido de EPI (que a gente sabe que não acontece). O EPI é quente em determinados locais, não é pensado para regiões diferentes, e a gente tem trabalhos que mostram que mesmo a pessoa toda vestida de EPI, quando você pulveriza, mais de 30% ainda entra em contato dérmico. Então tem a exposição dérmica, exposição por inalação, e também quando come, porque é a mesma alimentação que a população geral tem. Por ele trabalhar o dia a dia com o agrotóxico, ele está mais exposto que a população em geral. 

BdF PE: Como você mencionou, existem algumas formas de se contaminar com os agrotóxicos através do contato, entre elas está a alimentação, que pode atingir qualquer pessoa. Qual a incidência da contaminação através da alimentação?

Cheila: Primeiro é um erro achar que a contaminação é só por alimentação. Vamos pegar regiões como Petrolina. Em Petrolina a zona rural é muito perto da zona urbana, então você tem regiões que são próximas e tem locais, por exemplo, nas regiões de fumicultura, que [a área rural] é praticamente dentro da cidade. Então quando você pulveriza o agrotóxico, você tem a contaminação não só por alimento das pessoas. 


Cheila pesquisa incidência de doenças relacionadas a agrotóxicos no Vale do São Francisco / Reprodução

A gente tem um resultado do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), que observa a quantidade de agrotóxicos e o tipo de agrotóxico dos alimentos. E, apesar de todas as limitações, ele era um programa que acontecia, que a Anvisa era responsável por ele. O último PARA mudou um pouco a forma de fazer esse cálculo, então a gente perdeu um pouco porque com essa mudança até parece que a gente não tem alimentos contaminados, mas quando você vai esmiuçar os resultados, você vê que tem sim, que a gente tem muito agrotóxico. Quando você vai adicionando, porque às vezes se fazem de forma isolada essas contas, como se eu comesse uma maçã. Mas eu como uma maçã e um morango, eu não como só uma fruta, só um legume, tem uma adição. Então todos nós aqui no Brasil estamos expostos a agrotóxicos, não tem para onde correr. 

A gente fez um outro trabalho também, entre 2014 e 2015, que quando a gente foi ver o perfil de câncer entre os trabalhadores rurais, comparando com outros trabalhadores em geral, se assemelha muito. Teve um estudo que a gente observou que os tipos de câncer daqui são muito semelhantes com de todas as regiões agrícolas do Brasil. Mas chamou atenção a quantidade de câncer hematológico, e a gente sabe que esse câncer é um modelo que está muito bem colocado na literatura de ser da exposição agrotóxica. E além do trabalhador rural, a gente tem muita leucemia na população em geral. Então essa população está exposta a alguma coisa, eu não posso afirmar por A+B que é por agrotóxico, mas eu sou muito tendenciosa e vem mais pesquisas pra dizer que é isso mesmo. É por agrotóxico. A população está sim exposta, não só o trabalhador rural. 

BdF PE: Os trabalhadores que lidam diretamente com os agrotóxicos recebem um adicional de insalubridade, devido ao risco do contato com esse tipo de substância, e isso algumas vezes incentiva alguns deles a querer trabalhar nessa parte, justamente pela questão financeira. Você acredita que existe a conscientização dos trabalhadores sobre os riscos de trabalhar com esses produtos?

Cheila: Primeiro, acho que o trabalhador rural não tem culpa nessa história. É o modelo produtivo que o Brasil escolheu, e principalmente os nossos governantes e a bancada ruralista optam por esse modelo. O que o Brasil investe hoje na agricultura químico-dependente é muito superior ao que ela poderia investir e que já investiu em anos anteriores, com limitações, em outras políticas para modelos alternativos. E aqui a gente pode falar de vários modelos, mas entre eles a agroecologia. Tem muita gente que vive com agroecologia, planta na agroecologia, exporta com a agroecologia. Mas interessa muito mais ao mercado brasileiro investir em um modelo químico-dependente. O trabalhador rural é escravo desse modelo que a gente utiliza. 

E quando a gente fala que recebe insalubridade, que trabalhador recebe insalubridade? Aqueles de grandes empresas se contaminam também, mas essas têm até políticas que observam um pouco mais, porque eles têm que cumprir selos para exportar. Só que a maioria da produção daqui é de agricultor familiar, e esse agricultor que não vai receber insalubridade. 

E é interessante o próprio discurso daqueles órgãos que fiscalizam: o discurso do agrotóxico é muito grande. Quando você vai colocar alguém que vai falar de modelos que são alternativos sustentáveis, aí vem a palavra “utopia”, lá vem aquela história de que “Ai, e a fome no mundo?”. Há muito tempo o Brasil não tinha tanta gente passando fome como agora. E olha a quantidade que a gente produz hoje e olha a quantidade de agrotóxico que a gente usa hoje. São falácias. O agricultor não tem culpa. A maioria sabe? Sabe, mas não tem alternativa, infelizmente. E outros não sabem mesmo, porque a informação tem muita, mas para quem? Eu não sei se o agricultor que está no campo tem acesso à essa entrevista que eu estou dando agora, então infelizmente é o modelo que o Brasil e outros países do mundo escolheram. 

 

Edição: Vanessa Gonzaga