A Caixa Econômica Federal entregou, em 2020, um habitacional com 2,6 mil moradias no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife. O conjunto Vila Claudete foi entregue em 2020, mas nem todos os beneficiados gostaram do que receberam. Muitos deixaram as casas vazias. Ao longo de um ano outras famílias que também necessitam de moradia foram ocupando essas casas, mas agora são alvo de pedido de reintegração de posse por parte da própria Caixa, que pode colocar dezenas de famílias nas ruas durante novo pico de pandemia.
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Construído através do programa Minha Casa Minha Vida, o residencial foi iniciado ainda no governo Dilma e finalizado no governo Temer, ficando pendentes os serviços de iluminação pública e de abastecimento de água e esgotamento, de responsabilidade dos estados e municípios. A Celpe e a Compesa concluíram os serviços entre 2019 e 2020. Em julho de 2019 foram entregues as primeiras 1.121 residências, enquanto as chaves de outras 1.432 foram entregues em fevereiro de 2020, com as presenças do então prefeito Lula Cabral e do governador Paulo Câmara. Ficaram pendentes apenas 67 casas, ainda de posse da Caixa.
Mas grande parte das famílias beneficiadas não foram para o Vila Claudete. O conjunto habitacional foi construído muito distante do centro do Cabo de Santo Agostinho, a uma distância de 1h30 de caminhada. Apenas uma linha de ônibus atende os moradores do residencial, ainda assim em horários restritos. Não há sequer supermercados nas proximidades. O quadro fez com que quase metade dos beneficiários não se mudassem para as moradias. Alguns abandonaram, outros deixaram fechadas por meses, mas tinham planos de voltar.
Num cenário de crise econômica profunda, desemprego e déficit habitacional, muitas famílias em situação de vulnerabilidade encararam a distância e foram ocupar as casas vazias no Vila Claudete. As famílias não estavam organizadas num movimento de luta por moradia. Foram chegando aos poucos e ocupando as casas vazias. Ocuparam inclusive as 67 casas que ainda pertencem à Caixa. Essas residências são as que se tornaram objeto do processo de reintegração de posse movido pelo banco.
Moradora de uma das 67 casas, Andrielle Fernanda, 25 anos, chegou ao Vila Claudete em abril de 2020. “Minha mãe ganhou uma das casas aqui na remessa de fevereiro de 2020. Mas ela me colocou para fora de casa, fiquei sem saber o que fazer. Aqui havia várias casas desocupadas, o mato tomando conta, sem função nenhuma. E algumas famílias já haviam começado a ocupar. Eu, desempregada, resolvi ficar e morar aqui”, diz ela.
Andrielle, que vive com o marido, conta que entre os ocupantes há outros casais jovens que ocuparam casas em busca de autonomia para construírem suas vidas. Mas grande parte dos ocupantes têm outro perfil. “São famílias em situação de extrema pobreza, de fome mesmo, com muitas crianças”, diz ela.
A jovem considera que o município oferece poucas oportunidades de trabalho. “Além de não ter emprego formal, também é difícil arranjar ‘bico’. E aqui [o Vila Claudete] é longe de tudo, é difícil. Tem a questão da discriminação contra as pessoas daqui. Acham o lugar esquisito”, diz ela. A explicação vem em seguida. “O Cabo é muito carente de serviços públicos de assistência social, há poucas ONGs atuando, poucos movimentos. E aí impera o tráfico de drogas, a violência. É um lugar difícil para viver”, completa.
A discriminação ocorre também dentro do residencial. Parte dos titulares que vivem nas casas conquistadas não veem com bons olhos as famílias que ocuparam as casas vizinhas. “Acham que nós estamos ‘tomando’ as casas das pessoas que se inscreveram e que esperavam as casas. Não entendem que estamos aqui lutando pelo nosso direito de ter moradia. Está na Constituição”, diz Andrielle. Ela conta que, apesar de o processo de reintegração de posse ser encabeçado pela Caixa, alguns titulares que não foram morar nas casas já apareceram fazendo ameaças a vizinhos. “Já chegou gente armada para colocar a família para fora da casa”, lembra ela.
A remoção das famílias
Hoje, das 2.620 moradias, cerca de 1.200 (46%) estão ocupadas por não titulares. Alguns proprietários estão processando individualmente ocupantes. Mas a Caixa Econômica acionou a Justiça Federal de Pernambuco (JFPE), abriu processo (nº 0800723-02.2020.4.05.8312) pedindo reintegração de posse dos 67 imóveis que pertencem ao banco no Vila Claudete, pedindo expulsão das famílias. Esses imóveis ainda não foram entregues aos seus titulares. O Brasil de Fato Pernambuco entrou em contato com a Caixa, que não respondeu à reportagem.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, no dia 23 de fevereiro, uma recomendação a todos os magistrados do país para que sejam suspensas as avaliações dos casos de desocupação forçada de imóveis urbanos e rurais, especialmente se as pessoas envolvidas estiverem em condição de vulnerabilidade e por estarmos em meio a uma crise sanitária. O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) também havia aprovado resolução similar no primeiro semestre de 2020.
Apesar disso, o juiz Ethel Francisco Ribeiro, da 34ª vara federal (PE), proferiu decisão liminar favorável à Caixa, determinando que as famílias saiam voluntariamente de suas moradias até a próxima sexta-feira, 12 de março.
A Defensoria Pública da União (DPU) está atuando na defesa das famílias no caso, tentando impedir a reintegração de posse e garantir o cadastro das famílias em programas habitacionais. Ao Brasil de Fato Pernambuco, o defensor público André Carneiro Leão afirmou que, além das resoluções do CNJ e do CNDH, também há precedentes em sentido semelhante em tribunais superiores, mas não são vinculantes (ou seja, não é obrigatório aos demais tribunais seguirem os precedentes).
“Infelizmente alguns juízes federais em Pernambuco não estão observando as recomendações. Há, neste momento, outras decisões semelhantes em vigor, o que é lamentável. A DPU manifesta-se contrariamente a todas elas”, diz Carneiro Leão. Ele também informa que a DPU cobrou a participação das três esferas federativas – União, estado e município – no caso, “para garantirem o direito à moradia digna para essas famílias, nos termos dos artigos 6º e 23º, IX, da Constituição”, conclui.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, do Governo do Estado, para saber a posição do secretário Marcelo Bruto sobre o caso, mas até o momento não tivemos resposta. Também entramos em contato com a Prefeitura do Cabo de Santo Agostinho, liderada por Keko do Armazém (PL) e que tem uma Superintendência de Habitação, mas até o momento o Executivo municipal não respondeu às perguntas.
Na última quarta-feira (3), em Brasília, o deputado federal pernambucano Carlos Veras (PT), criticou a decisão da Caixa de pedir reintegração de posse. “Essas famílias que estão sofrendo, desempregadas, passando fome e outras necessidades, elas vão para onde? Para o meio da rua? Retirar as famílias de suas casas no meio de uma crise sanitária? Não tem cabimento”, reclamou. “Essa ação foi movida pela Caixa Econômica Federal, que é responsável por garantir habitação para a população”, completa o petista. O deputado também se comprometeu a estar presente no Vila Claudete no dia 12, caso a Justiça mantenha a reintegração.
O conjunto residencial
O Vila Claudete foi construído dentro do território de Suape para abrigar famílias que viviam em áreas onde foram construídas indústrias ou que se tornaram reserva ecológica dentro do complexo portuário. Mas não foram só famílias do Cabo e do Ipojuca, mas também de Jaboatão, Moreno e Escada. A ideia era reduzir o déficit habitacional em toda a região estratégica que cerca Suape.
As casas possuem dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço, totalizando 40 metros quadrados de área construída, num lote de 125 metros quadrados. As casas têm piso em cerâmica, janelas e portas externas em alumínio e portas internas em madeira, laje em concreto e EPS (isopor) e telhas de fibrocimento. Também há aquecimento sustentável de água com sistema de placa solar.
Suape construiu no local uma unidade básica de saúde da família (UBS) tipo 1, um Centro Referência de Assistência Social (CRAS), um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) e três estações de tratamento de esgoto. O residencial também conta com equipamentos comunitários como parques infantis, quadras e espaços para reuniões e festas. Foram entregues ainda em 2020 uma creche, uma escola municipal de ensino fundamental (1 e 2), uma UBS tipo 2, um miniterminal de ônibus, uma Academia das Cidades e um parque ecológico.
Tudo foi entregue, mas nada está em funcionamento. Os moradores que precisem de atendimento de saúde ou ir à escola, precisam se deslocar até o centro do Cabo, pagando ônibus – que funciona em horário restrito – ou caminhando por no mínimo 1h. O terminal de ônibus é atendido por apenas uma linha e até as 21h. Após isso, tem que pagar por aplicativos de transporte ou andar. As pessoas que largam tarde do trabalho ou ainda as que trabalham longe, têm dificuldade para voltar para casa. As praças de academia da cidade não recebem manutenção e se tornaram ponto de tráfico de drogas.
O Vila Claudete foi erguido pela CMT construtora numa área de 97 hectares. O Governo Federal colocou R$246,7 milhões através do Minha Casa Minha Vida (67% para casas e vias; 33% para terraplanagem e equipamentos públicos).
Edição: Vanessa Gonzaga